Valor econômico, v. 18, n. 4476, 05/04/2018. Política, p. A9.

 

ENTREVISTA - Diego Werneck

Cristian Klein

05/04/2018

 

 

Apontado como um poder moderador - no passado recente arrogado pelos militares - o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem conseguido exercer o papel de reduzir os conflitos políticos no país, afirma o professor de direito constitucional da FGV Direito Rio, Diego Werneck. "Quem tem a pretensão de moderar, antes de mais nada, precisa construir a imagem de que não é uma das partes do conflito", afirma, a respeito do julgamento de ontem do habeas corpus pedido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que dividiu o país em manifestações contrárias e favoráveis à prisão do petista.

Para Werneck, o STF tem sido "arrastado ora para um lado, ora para o outro ao sabor" das posições individuais de seus ministros. A falta de colegialidade, diz, é a marca de um Supremo que se distingue bastante em relação a Cortes de outros países. O especialista cita poderes formais e informais dos ministros do STF que os tornam individualmente dotados de agendas próprias e poderes de veto, como os pedidos de vista e a manifestação constante na imprensa. "Se você quer ser moderador não pode querer ser salvador da pátria ou um resolvedor-geral dos problemas da República - seja da República mesmo, da conjuntura política, do governo ou de sua agenda", diz.

Diego Werneck considera que o Supremo está com dificuldade de convencer as pessoas de que não é parte do conflito, em grande parte por causa dessa fragmentação. "Os ministros têm suas agendas, fazem suas decisões sobre o que priorizar e o que finalizar de forma individual", diz.

Cita, no caso da jurisprudência sobre a prisão após condenação em segunda instância, a rápida mudança de posição de Gilmar Mendes. Em outros países, jurisprudências mudam em ciclos mais longos, de duas ou três gerações de ministros, lembra. "Você vê no tribunal, por exemplo, ministros mudando de posição em função de quem está no poder. Isso é uma armadilha que o Supremo construiu para si", diz. Ao mesmo tempo, estão sujeitos à pressão da opinião pública: "Casos de grande repercussão parecem afetar o comportamento dos ministros", afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor.

Valor: O STF é suscetível à pressão da opinião pública?

Diego Werneck: A relação entre tribunais constitucionais e opinião pública tem vários estudos internacionais e uma tendência geral é a de que, no médio e no longo prazo, tribunais não conseguem sustentar posições contrárias ao que a maioria da população quer. Por vários motivos: seja porque uma decisão deflagra um processo de reação na política, e faz com que eleitores se mobilizem e votem em políticos que vão indicar ministros com posição diferente, seja porque os ministros mesmos, como parte da sociedade, acabam mudando de posição sobre os temas, a partir do que escutam e leem, pela reação da imprensa ao longo do tempo. Tribunais não conseguem se isolar sobre o que se tem dito sobre eles. Mas no Brasil há um problema de aceleração. Isso não acontece num ciclo longo, de duas, três gerações de ministros. Casos de grande repercussão parecem afetar o comportamento dos ministros não só por limitar o que eles fazem - porque seria custoso diante da opinião pública e estão preocupados com o que vai ser publicado -, por ser uma ameaça, mas como uma oportunidade. Há ministros que se aproveitam para serem empreendedores públicos de determinado tema. Não acho que é generalizado, mas acontece.

Valor: A jurisprudência sobre a prisão após condenação em segunda instância já foi alterada, mais de uma vez nos últimos anos, e não despertou tanto clamor. Mas agora envolve uma questão de conjuntura política. Lula solto poderia favorecer seu potencial de transferência de voto para um candidato do PT ou até abrir caminho para que o STF permita sua candidatura.

Werneck: Uma das piores coisas que poderia acontecer com essa decisão do Supremo, no caso do Lula, é que parecesse que o Supremo está decidindo as eleições de 2018. Os efeitos da Lei da Ficha Limpa não dependem desse HC de Lula. O HC é sobre execução provisória. Legalmente, a questão dos efeitos eleitorais vai ser decidida em outra esfera e até o momento a resposta parece clara. Na ausência de uma liminar - que pode acontecer, não é provável, mas é possível - que suspenda os efeitos da Ficha Limpa, a princípio o ex-presidente Lula terá seu registro negado. Mesmo preso, Lula pode conseguir essa liminar e concorrer.

Valor: Mas a decisão tem efeitos políticos.

Werneck: É inevitável. Vai ser utilizada de diversas formas pelo próprio Lula, pelo PT, por seus críticos. Terá seus efeitos políticos, mas que não são determinados em si pelo que os ministros estão decidindo neste caso. Idealmente, os ministros não se preocupariam em tentar calcular os efeitos políticos. É o típico problema em que se você acha que vai resolver os problemas da eleição de 2018, você vai fazer besteira.

Valor: Como assim?

Werneck: Não é a autoridade que o Supremo recebe da Constituição. Os ministros não foram sabatinados para resolver todos os problemas políticos do país. Para além da questão da autoridade, o principal argumento para que o Supremo devesse se distanciar ao máximo que puder é que isso só vai prejudicar a credibilidade do tribunal. Precisa manter - o que o Supremo está com dificuldade de fazer - a percepção pública de que você não é uma parte do conflito. Está ali para pôr um fim naquela briga. As partes vão continuar revoltadas, tudo bem. Mas se elas acham que você não foi um árbitro, mas sim um prolongamento de um dos lados do conflito, isso é muito perigoso para o tribunal.

Valor: Como isso se daria?

Werneck: Quanto mais problemas políticos da conjuntura você tenta resolver, mais você se expõe a esse perigo. Se você está até o pescoço na conjuntura, você acha que a solução é dar mais uma braçada na conjuntura. E isso não tem fim, vai se afundar cada vez mais. Precisa aceitar que qualquer que seja a decisão sobre o caso Lula você vai ser duramente criticado por uma parte substantiva da população brasileira. Não tem como fugir disso. Mas precisa lembrar que tem garantias de independência no cargo. Está no topo da carreira judicial e é um dos atores institucionalmente mais importantes do país. E você não vai conseguir reverter essas críticas no curto prazo. O que o Supremo precisa é de uma visão de médio e longo prazo. O que implica tomar medidas no curto prazo que vão ser criticadas e no médio e longo prazo reforcem a imagem de que, sim, não concordo com a decisão do tribunal, mas qualquer que tenha sido ela eu acho que foi uma decisão séria, que não foi decisão politizada. O segredo está em voltar a pensar no futuro e a voltar a pensar que, se você tenta resolver as críticas à decisão de agora na decisão de amanhã, o problema nunca vai ter fim.

Valor: O que o STF tem de peculiar em relação às principais Supremas Cortes estrangeiras?

Werneck: O problema do Brasil são dois, que não são únicos do Supremo, mas são exacerbados. Primeiro, percebemos uma flutuação a partir da conjuntura no curto prazo. Você vê no tribunal, por exemplo, ministros mudando de posição em função de quem está no poder.

Valor: Por exemplo?

Werneck: Acompanhe as posições do ministro Gilmar Mendes ao longo dos últimos anos sobre esse tema [execução de pena após condenação em segunda instância]. Você não consegue ter certeza de que a tese firmada hoje vai se manter independentemente do que aconteça na política no próximo ano. Isso é uma armadilha que o Supremo construiu para si. Não é a ação de um ou outro ministro apenas. O STF infelizmente nos últimos anos construiu uma suspeita sobre a relação entre as mudanças na política e as mudanças de jurisprudência do Supremo. A relação entre as duas coisas existe em qualquer país. O problema é a relação de conjuntura. Não é a de longos ciclos, de uma ou duas gerações até que haja uma mudança na jurisprudência.

Valor: Uma mudança favorável a Lula também ajudaria o presidente Temer, investigado na Lava-Jato e amigo de Gilmar Mendes. Você se refere a essa influência da conjuntura política?

Werneck: Aí entra o segundo problema. Essa contingência das posições do Supremo muitas vezes opera no nível do comportamento individual. Porque um ministro sozinho faz muita diferença no tribunal. E os ministros podem ter estratégias e prioridades muito diferentes uns dos outros. Então, para alguns ministros o cenário pós-2018 e o que acontece com o Temer pode ser decisivo. Não acho que seja algo que possa explicar o comportamento do Supremo em geral. Mas é um problema que a apreciação de um ministro sobre o que importa na conjuntura venha a ser decisivo.

Valor: De que forma isso ocorre?

Werneck: Em outras Cortes divididas, por um placar de 6 votos a 5, por exemplo, é possível que o voto decisivo seja de um ministro que esteja pensando na conjuntura também. O problema é que num tribunal em que o ministro sozinho pode parar o processo ao pedir vista; que como presidente pode não pautar; que como relator pode dar uma liminar, não pautar [para o plenário] e gerar um fato consumado; nesse cenário a capacidade de um ministro sozinho fazer a diferença em termos comparativos é excepcional no Brasil.

Valor: Que recursos caracterizam a excepcionalidade do Brasil?

Werneck: Há recursos formais e informais. Um poder muito forte é o de um relator conceder uma liminar, monocraticamente, e escolher se e quando o plenário vai apreciá-la. O Supremo dá muito poder individual a seus ministros, de decidir casos sozinhos. Até ir ao plenário, o relator é o dono do processo. Isso é um problema. Além disso há mecanismos de controle de agenda que vão se construindo informalmente, por exemplo, o pedido de vista, que deveria ser uma coisa de duas ou três semanas para se estudar o caso, mas um ministro sozinho, numa derrota que se anuncia na votação, ele para o processo e segura, pelo tempo que achar necessário. Isso é usado no Supremo como um poder de veto.

Valor: O que mais?

Werneck: Chamaria atenção também a uma coisa excepcional no Brasil que é a manifestação na imprensa. Os ministros conseguem mudar o cenário político com suas sinalizações, ameaças, encorajamentos a diversos atores sobre como se comportarão no futuro. Ministros podem municiar partes com seus argumentos. Esse grau de liberalidade não é comum em outros países. O mais comum é que o presidente da Corte fale pelo tribunal, ou que os ministros se pronunciem em palestras acadêmicas. A presença constante de vários ministros nas páginas dos jornais discutindo temas da ordem do dia você não vê nos tribunais mais consolidados, no tribunal constitucional alemão, espanhol ou na Suprema Corte dos Estados Unidos.

Valor: No Brasil, tem se difundido a ideia de que Supremo exerce o papel de um poder moderador, que no passado recente foi arrogado pelos militares.

Werneck: Quem tem a pretensão de moderar, antes de mais nada, precisa construir a imagem de que não é uma das partes do conflito. E acho que o Supremo está com dificuldade de convencer as pessoas disso em grande parte por causa dessa fragmentação. Os ministros têm suas agendas, fazem suas decisões sobre o que priorizar e o que finalizar de forma individual. O tribunal é arrastado ora para um lado, ora para o outro ao sabor dessas posições individuais. Por que não vejo o Supremo sendo uma influência moderadora hoje, embora a Corte tenha mecanismos para reduzir, amortecer o conflito político em vez de aumentá-lo? Isso não tem dado certo. Primeiro, por causa desses poderes individuais. Está faltando colegialidade no tribunal - se o Supremo quer ser uma influência moderadora, palavra que estou usando num sentido muito frouxo, o de apenas agir para reduzir o nível de conflito político. Outra coisa é que se você quer ser moderador não pode querer ser salvador da pátria ou um resolvedor-geral dos problemas da República - seja da República mesmo, da conjuntura política, seja do governo ou de sua agenda. Não pode ter o compromisso de ser o salvador, de quem quer que seja. Precisa saber a hora de não entrar de cabeça no conflito político.