Correio braziliense, n. 20118, 21/06/2018. Mundo, p. 10

 

Isolado, Trump cede

Rodrigo Craveiro

21/06/2018

 

 

IMIGRAÇÃO » Presidente norte-americano assina ordem executiva que coloca fim à separação de crianças dos pais ou responsáveis, depois de travessia ilegal da fronteira, mas insiste na política de "tolerância zero". Famílias serão mantidas, juntas, nos centros de detenção

A avalanche de críticas veio da Organização das Nações Unidas (ONU), da comunidade internacional, do papa Francisco, do Partido Republicano e até mesmo da mulher Melania, e da filha, Ivanka (leia abaixo). Em uma reviravolta surpreendente, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não resistiu à pressão e ao impacto das imagens e dos áudios de crianças, desesperadas, chorando em centros de detenção mais parecidos com jaulas. Às 15h de ontem (16h em Brasília), acompanhado do vice, Mike Pence, e da secretária de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, Trump determinou o fim da política de separação de crianças migrantes de suas famílias na fronteira com o México. “Nós estamos assinando uma ordem executiva que considero ser muito importante. É sobre manter famílias unidas, enquanto, ao mesmo tempo, nos certificamos de que temos uma fronteira muito poderosa e muito forte”, declarou. Assim que firmou o documento, o magnata ironizou: “Vocês terão um monte de pessoas felizes”.

Apesar da reversão da polêmica política migratória, que afetou dezenas de brasileiros (leia abaixo), Trump advertiu que não abrirá mão da tolerância zero. “Eu não gostei da visão ou do sentimento de famílias sendo separadas. (....) Manteremos as famílias juntas. Ao mesmo tempo, manteremos uma fronteira muito poderosa e continuaremos com a política de ‘tolerância zero’”, avisou. “Temos tolerância zero em relação às pessoas que entram ilegalmente no país.”

Ao ser questionado sobre a reação de Melania e de Ivanka, ele respondeu que a filha, a mulher e ele próprio “têm fortes sentimentos” em relação ao tema das crianças separadas. “Acho que qualquer pessoa com um coração poderia agir da mesma maneira. Não gostamos de ver famílias separadas. Ao mesmo tempo, não queremos ver pessoas entrarem ilegalmente em nosso país”, acrescentou Trump. Ele anunciou que trabalha em uma “lei (de imigração) muito mais abrangente”. A Câmara dos Deputados deve votar, ainda hoje, um projeto de lei com rígidas medidas contra os ilegais e que busca resolver a situação dos dreamers, os imigrantes em situação irregular que chegaram aos EUA quando crianças.

Julgamento

De acordo com a ordem executiva, as famílias detidas serão mantidas, juntas, pelo Departamento de Segurança Interna, até o fim dos trâmites  para julgamento por entrada ilegal — o processo pode durar meses. Alguns pais, no entanto, já teriam sido deportados e os filhos permanecem em abrigos nos EUA. O documento sinaliza que os ilegais poderão ser retidos indefinidamente no país.

Kennneth Roth, diretor executivo da Human Rights Watch (HRW), chamou de  “crueldade desprezível” a separação das crianças dos pais. “Foi uma maneira completamente inadequada de coibir a imigração ou de criar uma moeda de barganha para obter financiamento do muro fronteiriço. Ao contrário da alegação de Trump, tal medida não era ditada pela lei, mas uma política simplesmente adotada pelo governo”, disse à reportagem.

Em entrevista ao Correio, Eduardo Beckett, advogado em El Paso (Texas) que representa famílias separadas após a detenção, não poupou críticas ao presidente. “Trump não tem respeito pela humanidade e quer tornar a América branca novamente”, afirmou. “É errado prender pais e filhos em centros de detenção, quando buscam asilo. Isso é criminalizar o processo de  asilo, algo desumano e ilegal.” Segundo ele, os centros fornecem o mínimo de assistência médica e refeições pouco nutritivas. Beckett cita que o caso mais chocante de que tomou ciência envolve o de uma gestante que deu à luz na prisão. “Ela foi levada ao hospital e separada do bebê.”

O papa Francisco intensificou a pressão sobre Trump. “A dignidade de uma pessoa não depende de que seja cidadã, migrante ou refugiada. Salvar a vida de quem escapa da guerra e da miséria é um ato de humanidade”, escreveu no Twitter. A premiê britânica, Theresa May, chamou de “profundamente perturbadoras” as imagens de “crianças detidas no que parecem ser jaulas”.

Eu acho...

“A resposta não está em deter crianças, nem mesmo famílias, mas em parar de perseguir cada migrante que entrar nos Estados Unidos de maneira irregular. Trump criou este problema, ao iniciar essas perseguições. Ele pode consertar esta medida retrocedendo à velha política, que funcionou por anos.”

Kenneth Roth, diretor executivo da Human Righs Watch (HRW)

Apelo de filha

A filha de Trump pediu ao pai que colocasse fim à separação de famílias. Segundo a TV CNN e o jornal The Washington Post, Trump relatou a congressistas republicanos que Ivanka tinha comentado o problema. O senador Chris Collins disse que Trump contou que a filha viu as imagens das crianças imigrantes e lhe recomendou a lidar com a crise “por muitas razões”. “Ele citou que a filha o incentivou a terminar com isso e que as imagens são dolorosas”, afirmou o deputado Carlos Curbelo.

Crise atinge Nova York

Pelo menos 70 crianças migrantes separadas dos pais foram levadas a abrigos de Nova York. Uma equipe da televisão local NY1 flagrou um grupo de meninas falando em espanhol e que foram separadas na fronteira no abrigo Cayuga Centers, no bairro de East Harlem, na madrugada de ontem. O governador do estado de Nova York, Andrew Cuomo, chegou a anunciar que prepararia uma ação judicial contra a Casa Branca.

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Brasileiras sonham com o reencontro

21/06/2018

 

 

Pelo menos 4.360km e 29 dias separam a mineira Júlia (nome fictício), natural de Belo Horizonte, do filho de 5 anos, retirado da mãe em 23 de maio e levado a um abrigo em Los Angeles. Por telefone, da Filadélfia, ela contou ao Correio que ambos foram detidos pela Imigração em Santa Teresa, no estado do Novo México, depois de atravessarem a fronteira. “Eles me falaram que meu filho iria para um abrigo e eu seria encaminhada à prisão. Tiraram todo o nosso dinheiro. Durante muito tempo, fiquei sem saber como ele estava. Na Imigração, me disseram que, após eu sair da cadeia, teria de procurar pelo menino”, disse. “Soube que o meu filho estava em um lar temporário, com desconhecidos. Eles não têm  o direito de colocá-lo numa casa de estranhos”, lamentou.

Em liberdade, Júlia, 24 anos, conseguiu conversar com a criança por telefone. O filho reclamou da comida e de saudades. “Ele falava que amanhã viria embora e que era para eu buscá-lo no aeroporto. É uma criança, não tinham o direito de fazer isso”, comentou, sem segurar as lágrimas. Na tarde de ontem, novo telefonema. “Ele me garantiu que está bem e que amanhã virá para casa”, repetiu. Após saber da assinatura da ordem executiva por parte de Trump, Júlia admitiu que conta as horas para rever o filho. “Trump só fez isso para não virmos mais ao país dele. Eu pretendo estar com o meu filho o mais rápido possível. Soube que começarão a devolver as crianças em 48 horas.”

Aniversário

A também mineira Lorena, 27 anos, passou o aniversário do filho sem abraçá-lo. O garoto completou 9 anos em um abrigo em Chicago. Ambos entraram em território americano em 29 de maio. Assim que viram o agente da Imigração, se entregaram e pediram asilo. Foram levados a uma sala, onde, segundo ela, o chão era gelado, e tudo o que lhes  forneceram de comida foram burritos. “No dia seguinte, levaram meu filho, sob a alegação de que ele me veria dois dias depois, até que os documentos fossem providenciados”, afirmou à reportagem. Lorena lembra que colocaram correntes em seus pés e em suas mãos, antes de ser transferida para a Prisão Federal de Otero, em El Paso (Texas). Já se passaram 22 dias  desde a separação de mãe e filho. “Falei com ele por telefone. Reclamou que a comida não é boa, que está passando mal e não o deixam brincar. Está trancado em um quarto.”

Lorena demonstrou alívio, após o recuo de Trump. “Estou muito feliz. Deus tocou no coração daquele homem e ele vai devolver o meu filho”, desabafou. Ela revelou que, na prisão de El Paso, algumas mães estavam até três meses sem falar com os filhos ao telefone.

O cônsul geral adjunto do Brasil em Houston, Felipe Costi Santarosa, anunciou à Agência Brasil que, das mais de 2.300 crianças separadas dos pais, 49 são brasileiras. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou nota segundo a qual o governo “acompanha com muita preocupação o aumento dos casos de menores brasileiros separados dos pais ou responsáveis”. O texto classifica a prática como “cruel” e sustenta que está “em clara dissonância com instrumentos internacionais de proteção aos direitos da criança”. O Itamaraty orientou os consulados do Brasil nos EUA a reforçarem medidas implementadas nos últimos anos, que incluem o mapeamento de todos os abrigos no país. (RC)

2.342

Número de crianças separadas dos pais, após atravessarem a fronteira, entre 5 de maio e 9 de junho