Correio braziliense, n. 20117, 20/06/2018. Mundo, p. 10

 

Trump tira os EUA de conselho da ONU

20/06/2018

 

 

IMIGRAÇÃO » Sob repúdio internacional pela política de separar dos pais as crianças de famílias que entram no país ilegalmente, o presidente americano rompe com o órgão de Direitos Humanos das Nações Unidas e defende a "tolerância zero"

Em meio ao repúdio internacional à política do governo Donald Trump de deter filhos de imigrantes ilegais na fronteira com o México, e separá-los dos pais, os Estados Unidos oficializaram ontem sua saída do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. O anúncio foi feito no início da noite, em Nova York, pela embaixadora do país na ONU, Nikki Haley, no dia seguinte às duras críticas do conselho à política de “tolerância zero” contra a imigração ilegal.

Halley afirmou que a decisão vem “depois de nenhum outro país demonstrar coragem para se juntar à nossa briga para reformar esse órgão hipócrita”, e argumentou que “esse passo não é um recuo dos nossos compromissos em direitos humanos”. Conforme dados oficiais, 2.342 crianças e jovens foram separados da família depois de terem ingressado em território americano pela fronteira mexicana, no período entre 5 de maio e 9 de junho. Na segunda-feira, o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, chamou de “inadmissível” esse procedimento.

As críticas à política imigratória de Washington tornaram inviável uma relação bastante desgastada. Nos últimos meses, a representação americana no Conselho de Direitos Humanos da ONU vinha acusando o órgão de ser “anti-Israel” e ameaçava deixá-lo, caso os métodos e a agenda do organismo não fossem reformados. “Nossa paciência não é ilimitada”, disse Haley na época em que o órgão adotou cinco resoluções contra Israel pelo tratamento aos palestinos na Faixa de Gaza e no território ocupado da Cisjordânia.

As manifestações de repúdio ao rigor americano contra a imigração tomaram ainda mais corpo com a divulgação de um áudio com vozes de crianças chamando por seus pais, em espanhol, em uma instalação para imigrantes (leia abaixo).

Protestos

As defensorias públicas de México, Colômbia, Equador, Honduras e Guatemala pediram de maneira conjunta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a adoção de medidas cautelares para que os EUA “interrompam a prática de separar crianças e adolescentes imigrantes de suas famílias e adotem todas as medidas necessárias para proteger seus direitos”, segundo definiram em um comunicado. A postura do governo americano, acusam, “é desumana e representa um total desprezo pelos direitos das crianças e dos adolescentes migrantes”.

Na noite de ontem, Trump se dirigiu ao Congresso com o objetivo de pressionar os parlamentares a aprovarem uma legislação abrangente sobre imigração, de modo a garantir a construção de um muro na fronteira com o México — uma das promessas da campanha vitoriosa do republicano à Presidência, em 2016. Trump enfrentou congressistas do próprio partido, divididos em relação à política de “tolerância zero” com a imigração ilegal.

“Se não temos fronteiras, não temos país”, declarou o presidente. “Devemos sempre deter as pessoas que entram ilegalmente no nosso país”, continuou o republicano, que abordou o assunto também em um discurso para pequenos empresários. “Eu não quero crianças sendo retiradas dos pais. Mas quando tentamos processar os pais por virem para cá ilegalmente, algo deve ser feito. É preciso separar as crianças”, argumentou. “Tudo de que precisamos é uma boa legislação, e podemos cuidar disso. Temos de fazer os democratas (oposição) seguirem em frente e trabalharem conosco.”

A chanceler (chefe de governo) alemã, Angela Merkel, rejeitou as declarações feitas na véspera por Trump sobre uma alta da criminalidade, na Alemanha, por causa do fluxo de imigrantes. “Minha resposta a isso é que o ministro do Interior (alemão) apresentou recentemente as estatísticas sobre criminalidade, e elas falam por si mesmas”, rebateu Merkel. O presidente americano, porém, voltou ao tema no Twitter. “A criminalidade na Alemanha está em alta de mais de 10% (as autoridades não querem contabilizar esses crimes), desde que os migrantes começaram a ser aceitos”, insistiu.

Radiografia da crise

Pedidos de residência

Entre março e maio deste ano, mais de 50 mil pessoas foram detidas por mês por entrar ilegalmente nos EUA pela pela fronteira com o México. Em 15% dos casos, são famílias, e 8% são menores desacompanhados de qualquer adulto. Existem 600 mil pedidos de residência acumulados, mas muitos requerentes preferem “sumir na multidão” em vez de defender o pedido na Justiça.

“Escudo familiar”

Entre outubro de 2017 e abril deste ano, cerca de 700 menores foram separados dos pais e retidos por semanas ou enviados para centros de acolhida. Com a “tolerância zero” para a imigração ilegal, o governo Trump determina a separação das crianças e a acusação criminal aos pais. Em cinco semanas de vigência, essa política acrescentou 2.300 menores ao contingente dos isolados da família.

Base legal

O presidente afirma que é obrigado a separar as famílias por uma lei que herdou dos governos democratas. Na realidade, o que força a separação é a política de processar os imigrantes que ingressam clandestinamente no país: quando os pais são detidos com acusações criminais, devem ser afastados dos filhos. “Se você cruza a fronteira ilegalmente e trafica uma criança, vamos processar você e as crianças serão separadas, como exige a lei”, resume o procurador-geral, Jeff Sessions.

Destino das crianças

Uma vez separadas dos pais, elas são entregues ao Escritório de Instalação de Refugiados (ORR, em inglês), do Departamento de Saúde e Serviços Humanos. São menores com idades de 1 a 18 anos, retidos em centros de acolhida onde dormem em colchões sobre concreto, em unidades rodeadas de cercas metálicas. Hoje, o ORR tem sob guarda quase 12 mil menores, dos quais 10 mil entraram no país sem a companhia de um adulto.

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Em áudio, crianças choram pelos pais

20/06/2018

 

 

A secretária de Segurança Interna dos EUA, Kirstjen Nielsen, foi questionada por jornalistas a respeito de um áudio em que se ouvem vozes de crianças chamando pelos pais, em espanhol, a partir de uma instalação para imigrantes — e, sem ter ouvido o registro, garantiu que todos os menores estão sendo tratados humanamente. “Papai! Papai!”, diz uma criança na gravação, inicialmente divulgada pela organização sem fins lucrativos ProPublica. A advogada de direitos humanos Jennifer Harbury disse ter recebido a fita na semana passada, mas não forneceu detalhes do local onde o áudio foi captado.

“Não, esta administração não criou uma política para separar famílias na fronteira e não, não se trata de abuso de crianças”, sustentou a secretária. “Estamos simplesmente fazendo cumprir uma lei que o Congresso americano aprovou e as anteriores administrações negligenciaram”, afirmou Harbury diante dos repórteres, na Casa Branca. A titular da segurança doméstica acrescentou que o governo Trump tem  padrões “elevados” para os centros de detenção e que as crianças são bem cuidadas. Ela também ressaltou que o Congresso precisa “preencher lacunas na lei” para que as famílias possam permanecer juntas.

O áudio veio à tona no momento em que políticos e defensores públicos se reúnem, na fronteira entre os EUA e o México, para visitar os centros de detenção de imigrantes. A líder da oposição democrata na Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, em entrevista após visitar uma instalação em San Diego (Califórnia), com outros deputados, disse que a separação de famílias é “uma medida bárbara que pode ser mudada em um instante pelo presidente dos EUA”. Segundo a congressista, “isso desafia tanto a consciência do nosso país que deve ser mudado, e deve ser mudado imediatamente”. San Diego é conectada ao aeroporto de Tijuana, no México, por uma ponte.

O senador republicano (governista) Ted Cruz, do Texas — outro estado fronteiriço ao México —, anunciou na segunda-feira que estava apresentando uma legislação de emergência para manter juntas as famílias de imigrantes. “Todos os americanos estão horrorizados, com razão, diante das imagens que estamos vendo no noticiário, de crianças chorando sendo afastadas das mães e dos pais”, disse Cruz. “Isso deve parar.”

A Igreja Mórmon disse que está “profundamente perturbada” pela separação de famílias na fronteira e pediu aos líderes do país que encontrem soluções com compaixão. O governador do estado de Massachusetts, o republicano Charlie Baker, reverteu a decisão de enviar um helicóptero para ajudar em um destacamento na fronteira mexicana e chamou a política atual do governo de “cruel e desumana”.

Na fronteira, 80 pessoas se declararam culpadas, na segunda-feira, das acusações de imigração ilegal. Elas perguntaram ao juiz do caso questões como “o que vai acontecer com minha filha?”, e “o que acontecerá com meu filho?”. O magistrado respondeu que não sabia o que aconteceria com as crianças.