Correio braziliense, n. 20115, 18/06/2018. Política, p. 4

 

Contra o casamento infantil

Otávio Augusto

18/06/2018

 

 

SOCIEDADE » Matrimônio precoce compromete a vida de milhares de meninos e meninas todos os anos, no Brasil. Projeto de lei em tramitação no Congresso acaba com brechas na legislação e proíbe a união de pessoas com menos de 18 anos de idade

A mistura de fatores como a religião, a cultura e as estruturas sociais e patriarcais está na raiz de um fenômeno tristemente comum no Brasil: o casamento infantil — aquele em que um dos cônjuges tem menos de 16 anos. Os números são alarmantes. O país tem o maior número de casos da América Latina e o quarto no mundo. Um projeto de lei que tramita no Congresso pretende proibir totalmente o casamento de crianças e adolescentes, acabando com as brechas existentes na legislação atualmente em vigor.

Estudo pioneiro feito pela Plan International Brasil e o Instituto Promundo analisa o contexto do casamento infantil nos dois estados brasileiros com maiores índices: Pará e Maranhão. Neles, o número de meninas casadas é muito superior ao de meninos. Foram 22.849 meninos de 10 a 14 anos casados, contra 65.709 meninas da mesma idade. Na faixa de 15 a 17 anos foram 78.997 meninos e 488.381 meninas. O resultado dessas uniões: um quinto dos 3 milhões de partos realizados pelo Sistema Único de Saúde são de mães menores de idade.

Na semana passada, um  projeto de lei que pode mudar este cenário chegou ao Senado. O texto passará pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), tendo a senadora Marta Suplicy (MDB-SP) como relatora. O projeto da deputada Laura Carneiro (DEM-RJ) suprime trechos da redação da Lei nº 10.406, de janeiro de 2002, que determinam as exceções legais ao casamento infantil. O texto passará pela CCJ e pelo plenário e, se não for modificado, vai para sanção do presidente da República.

Atualmente, meninas podem se casar a partir dos 16 anos, com o consentimento dos pais ou de um juiz. Em caso de gravidez, não há limite mínimo de idade. Para especialistas, a norma é permissiva e acaba possibilitando e, em certos casos, até favorecendo o casamento infantil. Segundo estudo da organização não governamental Promundo, três milhões de mulheres afirmaram ter se casado antes dos 18 anos. O estudo indica que 877 mil mulheres brasileiras se casaram com até 15 anos e que existem cerca de 88 mil meninos e meninas de 10 a 14 anos em uniões consensuais, civis ou religiosas, no Brasil.

A mudança na legislação é uma das ferramentas para o país atingir um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), de reduzir essa prática até 2030. Pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o casamento é permitido somente a partir dos 18 anos de idade na maioria dos países. De 2015 até o ano passado, países como Chade, Malawi, Zimbábue, Costa Rica, Equador e Guatemala elevaram a idade mínima de casamento para 18 anos. Além disso, aboliram as exceções que permitiam casamentos infantis.

Autora do projeto, a deputada federal Laura Carneiro acredita que a alteração da lei será o primeiro passo para uma ampla mudança cultural. “Estamos no século 21 e falhamos na preservação e na continuidade de políticas públicas de educação e assistência. Como podemos ter um código em que há brechas para a menina se casar em vez de estar na sala de aula? Essa é uma estatística ruim que deve começar a mudar”, pondera.

A senadora Marta Suplicy garante que apresentará seu relatório com a maior brevidade possível. “O projeto é singelo, mas de um significado imenso para a proteção de nossas crianças, em especial as meninas. Com o casamento infantil, a menina perde a capacidade de tomar decisões por si mesma; muitas deixam a escola, o que se refletirá na sua capacidade de conseguir emprego quando adulta. Sem contar outras situações graves, como a gravidez prematura, os abusos e a violência”, explica a senadora.

 

Histórias perpetuadas

O Banco Mundial tem dados ainda mais alarmantes. O estudo Fechando a Brecha: Melhorando as Leis de Proteção à Mulher contra a Violência, destaca que, de toda a população feminina brasileira, 36% se casaram antes dos 18 anos. Segundo o trabalho, meninas que se casam durante a infância sofrem com evasão escolar, gravidez precoce e abusos e violência doméstica.

Uma tabeliã do interior do Maranhão, que pediu para não ser identificada, relatou ao Correio uma união ocorrida na última semana. O jovem, de 16 anos, se casou com uma menina de 14 anos (completados no mês passado). O matrimônio foi um acordo entre as famílias. Ela está grávida. “A menina já largou a escola. Ele começou a trabalhar para sustentar a ‘nova’ família. Os pais acharam natural. Viveram a mesma história no passado. Afinal, a mãe da menina vai ser avó aos 31 anos”, detalha.

A tabeliã diz que a situação brasileira é preocupante. “Os números não crescem, mas, ao mesmo tempo, não regridem. Não vejo nenhum tipo de combate a esse mal. Espero que a mudança na lei sirva, pelo menos, para colocar o assunto em debate. O Brasil precisa assumir que convive pacificamente com essa realidade e que isso não é bom. Relatei um caso ao jornal, mas esbarro com essas histórias diariamente”, conclui.

Poucas são as políticas públicas para que esse cenário seja modificado. No Pará, por exemplo, o programa Pro Paz oferece acolhimento psicossocial a vítimas de exploração ou violência sexual. “A implantação do projeto vem ajudando a reduzir a revitimização, a superação dos traumas das vítimas e seus familiares, além de incentivar as denúncias. Assim, o Pro Paz Integrado atua na prevenção do abuso e exploração sexual e todas as formas de violência intrafamiliar”, explica o governo paraense, em nota. O governo maranhense não respondeu aos questionamentos do Correio.

________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Projetos de vida fracassados

18/06/2018

 

 

A mudança no marco legal, por si só, não será suficiente para atenuar os índices de casamento infantil. Para especialistas ouvidos pelo Correio, faltam mecanismos de inserção social, de promoção à educação e de desenvolvimento social. Sem isso, meninas e meninos país a fora continuarão vendo no casamento a única alternativa para, supostamente, melhorar de vida.

Débora Diniz, antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB), destaca a necessidade da criação de projetos de vida. “Temos que sensibilizar culturalmente as pessoas para não fragilizar ainda mais essas meninas alterando somente o marco legal. Quanto mais isoladas, sem acesso à informação e sem acesso a mecanismos do Estado para ter um projeto de vida, elas acreditam que é preciso reproduzir o modelo que veem nas mãe e avós. Projeto de vida passa por acesso a transporte, a segurança e a escola”, defende.

O professor Frederico Viegas de Lima, da Faculdade de Direito da UnB, é registrador civil em um cartório do Paranoá, distante 20km do Plano Piloto. Ele conta que, na cidade, há um número “grande e estável” de casamentos infantis. “Muitos jovens chegam com os pais para se casar. Isso é assustador. O pai vai ao cartório e assina o documento na minha frente. Eu projeto isso em meus filhos e me assusto. Tenho uma filha de 10 anos e fico pensando que pode ser ela daqui a quatro anos”, explica.

Para Lima, o freio na legislação ajuda, mas são necessários outros mecanismos para diminuir os índices de uniões prcoces. “É uma questão cultural. Esse é o primeiro passo, mas não o único. Tem de haver uma série de investimentos sociais, econômicos e culturais. Casar cedo, em muitas localidades e realidades, é muito normal e isso vai se perpetuando por gerações. Nesse contexto, as pessoas mais expostas são as mais pobres”, conclui.

Na última década, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), foram evitados 25 milhões de casamentos de crianças e adolescentes em todo o mundo. A entidade é categórica: os índices regrediram com várias medidas, entre elas, alterações na legislação, mas também com incentivos à educação. A entidade estima que 12 milhões de meninas ainda se casem todos os anos. (OA)