Correio braziliense, n. 20111, 14/06/2018. Mundo, p. 13

 

Batalha em torno do aborto

14/06/2018

 

 

ARGENTINA » Votação de projeto que legaliza a interrupção da gravidez leva para dentro do Congresso a divisão de uma sociedade com influência profunda da Igreja Católica. Milhares de partidários e adversários da proposta fazem vigília diante da sede legislativa

A divisão da sociedade argentina em torno de um tema crítico de ordem moral e religiosa desfilou ao longo de toda a quarta-feira diante do Congresso, que iniciou o debate sobre um projeto de lei que legaliza o aborto até a 14ª semana de gestação. Grupos favoráveis e contrários à iniciativa concentraram-se para acompanhar os debates e a votação, aguardada para a madrugada de hoje, com a expectativa de vitória por margem mínima para qualquer um dos lados — possivelmente, com o voto de desempate cabendo ao presidente da Câmara dos Deputados, Emilio Monzó. Em caso de aprovação, o projeto segue para o Senado.

Após sete tentativas fracassadas em governos anteriores, é a primeira vez que o Congresso argentino decide sobre mudanças na legislação sobre o aborto, atualmente permitido apenas se a gestação resultar de estupro ou representar risco para a vida da gestante. O tema é especialmente delicado no país, onde a Igreja Católica exerce influência ponderável, reforçada atualmente por ser a pátria do papa Francisco. O presidente Mauricio Macri, que teve a aprovação de mais de 70% dos cidadãos à iniciativa de abrir o debate legislativo, antecipou que não vetará a lei, caso passe por ambas as câmaras — embora se declare pessoalmente contrário ao aborto.

Nos últimos meses, os embates foram mais acirrados do que em 2010, quando a Argentina se tornou o primeiro país da América Latina a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Defensores da despenalização do aborto gritavam que haveria “confusão” nas ruas caso o projeto fosse rejeitado. Na Câmara, com os 257 deputados divididos praticamente ao meio e os últimos indecisos declarando o voto, as atenções se voltavam para o presidente da casa. Monzó omitiu a própria posição, mas uma foto de sua mesa mostrava um crucifixo e uma medalha de santo. “Não haverá empate”, garantiu.

“Há motivos de saúde pública. Tivemos três ministros da Saúde, os três com visões diferentes por pertencerem a governos distintos, mas nisso eles coincidiam: a legalização do aborto melhora os cuidados de saúde para as mulheres argentinas”, afirmou, na abertura dos debates, o deputado governista Daniel Lipovetzky. “Para além das boas intenções, (o projeto de lei) subverte uma ordem biológica, biomédica, jurídica e histórica da nação”, rebateu o deputado Horacio Goicoechea, da União Cívica Radical (UCR), também aliado ao governo.

“As reivindicações principais são de que se aprove o projeto de aborto legal, seguro e gratuito, que se cumpra a lei de educação sexual integral, que haja protocolos contra a violência de gênero nas escolas”, resumiu a líder estudantil Juana Garay. Segundo cifras oficiais, 17% das 245 mortes de grávidas registradas em 2016 decorreram da interrupção da gravidez em procedimentos ilegais. Várias ONGs calculam que a cada ano morrem cerca de 100 das 500 mil mulheres que fazem abortos clandestinos na Argentina.

“A penalização do aborto impõe uma carga discriminatória sobre as mulheres e meninas e põe em risco sua vida e sua saúde. O Congresso tem uma oportunidade histórica de proteger os direitos das mulheres ao pôr fim a esse status quo injusto e cruel”, afirmou José Miguel Vivanco, do organismo de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch, em comunicado divulgado horas antes do início da sessão parlamentar.

Por outro lado, a vice-presidente argentina, Gabriela Michetti, afirmou: “Temos mulheres que morrem por abortos mal praticados, é um tema de saúde pública que existe. Mas não aceito que para melhorar a situação estejamos encurtando a vida de outro ser”

Na América Latina, o aborto sem restrições é legal apenas no Uruguai e em Cuba. Também é permitido na Cidade do México. Em quase todos os demais países, só pode ser praticado em caso de risco para a vida da gestante, de inviabilidade do feto ou se a gravidez resultar de estupro. Em El Salvador e na Nicarágua, não é proibido em nenhum caso.

 

100

Total aproximado de mortes registradas anualmente no país em decorrência de abortos clandestinos

 

Frases

“A legalização do aborto melhora os cuidados de saúde para as mulheres argentinas”

Daniel Lipovetzky, deputado da base governista

 

“(O projeto de lei) subverte uma ordem biológica, biomédica, jurídica e histórica da nação”

Horacio Goicoechea, deputado da base governista