O Estado de São Paulo, n. 45507, 22/05/2018. Política, p. A4

 

AGU alertou para "risco" em decreto dos portos

Marianna Holanda

22/05/2018

 

 

Governo. Advogado da União alertou sobre artigo, alvo de investigação, que prorroga em até 70 anos as concessões e arrendamentos; Planalto defende versão final da decisão

O Palácio do Planalto desconsiderou mais de um alerta da Advocacia-Geral da União (AGU) apontando para irregularidade no Decreto dos Portos, editado em maio de 2017 pelo presidente Michel Temer. Em diferentes momentos, o órgão viu “risco relevante” em artigo que prorroga em até 70 anos os contratos de concessões e arrendamentos portuários já em vigor.

A lei anterior (de 1993) determinava prazo de 25 anos podendo ser renovado uma vez pelo mesmo período. O decreto é alvo de suspeitas em duas frentes: no Tribunal de Contas da União (TCU), que analisa sua legalidade, e na Polícia Federal, que investiga a relação entre Temer e empresas do setor. Também são investigados o ex-assessor especial da Presidência José Yunes e o coronel aposentado João Baptista Lima Filho – ambos são amigos próximos do presidente.

O Estado obteve, por meio da lei de Acesso à Informação, cópia de atas e documentos do grupo de trabalho organizado pelo Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil para analisar a proposta do decreto. Foram 33 encontros de setembro a dezembro de 2016. Participaram servidores da Secretaria de Política Nacional de Transportes, da Secretaria de Fomento para Ações de Transportes, do gabinete do ministro e da Agência Nacional de Transportes Aquaviários, além de advogado da União lotado no ministério.

O primeiro aviso da AGU partiu em dezembro de 2016, na forma de um comentário ao relatório final do grupo. Um mês depois, um parecer do mesmo advogado sobre a minuta do decreto questionava, entre outros pontos, a prorrogação dos contratos celebrados antes de 1993 mas ainda ativos por força de termos precários ou de liminares (caso da Rodrimar em Santos) e a renovação de concessões vigentes (situação em que se enquadra o Grupo Libra, um dos maiores doadores da campanha de Temer em 2014).

“Entendo que há um risco relevante de que o dispositivo regulamentar em questão venha a ser considerado ilegal mesmo na parte em que se refere aos contratos em vigor”, diz o parecer, assinado pelo advogado da União Felipe Nogueira Fernandes. No documento de 38 páginas, ele escreveu ainda que a prorrogação automática poderia ser interpretada como “dispensa de licitação”. O artigo tem potencial para beneficiar contratos mais antigos, cujas concessões podem durar até 100 anos.

Apesar disso, a minuta do decreto proposta pelo grupo de trabalho manteve a prorrogação dos contratos vigentes. Questionado, o ministério disse ao Estado que “para buscar cumprir o objetivo do trabalho, que era o de propor novos procedimentos ou adequação daqueles atualmente instituídos (...) decidiu-se por aceitar o risco e submeter o posicionamento à avaliação do senhor ministro do MTPA.” À época, o deputado federal Maurício Quintella Lessa (PR-AL) comandava a pasta.

Em maio do ano passado, antes de o decreto seguir para o Planalto, o texto passou por mudanças que atenderam em parte às observações do representante da AGU. O ministério incluiu dispositivo que não permite a renovação de contratos expirados – os chamados “pré 93”. Neste ponto, Fernandes elaborou nota técnica de duas páginas atestando as mudanças, mas mantendo as ressalvas feitas antes.

A nota técnica foi assinada no mesmo dia (4 de maio de 2017) em que a PF flagrou conversa telefônica entre o ex-assessor da Presidência Rodrigo Rocha Loures e Temer. Alegando desconhecimento sobre a redação do texto, Temer orienta Loures a falar com o subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Gustavo Rocha – o que ele fez quatro dias depois. Na transcrição dessa nova conversa, Gustavo Rocha mostra oposição: “Minha preocupação é expor o presidente em um ato que é muito sensível... Eu acho que já vai causar uma exposição para ele. Esse negócio vai ser questionado”.

A legislação não determina que o presidente deve seguir, obrigatoriamente, as orientações da AGU, mas elas ajudam a balizar o trabalho jurídico do governo. A AGU informou que o parecer é “opinativo” e foi elaborado para subsidiar a decisão presidencial. “Neste contexto, há uma avaliação de riscos jurídicos relacionados às normas propostas, que podem se concretizar ou não.”

Em nota, o Planalto diz que “qualquer discussão anterior ou minuta elaborada em fase de estudos fica prejudicada pela versão final do decreto”. “Essa foi a decisão final do presidente Michel Temer sobre o assunto”, completou o texto.

 

Porto de Santos

Empresas do setor dizem que impasse sobre teor do decreto retarda R$ 23 bilhões em investimentos

 

ALERTAS

Em três momentos, a AGU disse que trecho do decreto, mantido pelo Planalto, poderia ser considerado irregular

 

Dezembro 2016

Anotação no relatório final do grupo de trabalho. À época, o artigo queria incluir também contratos de transição e vencidos

 

Janeiro 2017

Trecho do parecer n˚20 a respeito da minuta do decreto, já sem os contratos de transição

 

Maio 2017

Nota técnica n˚1079, última manifestação da AGU antes de o decreto seguir para o Planalto. A proposta não incluia mais contratos vencidos