Valor econômico, v. 18, n. 4498, 08/05/2018. Brasil, p. A2.

 

'Meu dólar querido' dá tom à milonga argentina

Marli Olmos

08/05/2018

 

 

A jornalista Marcia Carmo lembra, como se fosse hoje, o dia em que visitou uma tradicional casa de câmbio de Buenos Aires com a ideia de buscar informações para escrever um livro sobre costumes argentinos.

Na conversa com o cambista, chamou sua atenção um desfile de cédulas de dólares danificadas, separadas por tipo de desgaste ou "acidente". As mais pitorescas estavam chamuscadas por fogo, num sinal de que algum mal-informado ou esquecido havia acendido o forno que até então servira de esconderijo para as economias da família.

Na Argentina, o inverno costuma ser a temporada dos dólares queimados. Além de acidentes no fogão, outros descuidados ligam aquecedores que serviram de cofre durante o verão.

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Algumas casas de câmbio perceberam nas notas danificadas a oportunidade de um negócio rentável. Em troca de uma comissão, o dinheiro que não serve é trocado pelo cambista em bancos dos Estados Unidos. Na bagagem, vão não só papéis queimados ou manchados, mas também "congelados", que perderam seus traços por passar tempo demais dentro de um pote plástico enfiado no congelador.

Histórias como essas parecem até piada. O livro "Argentinos, mitos, manias e milongas", das jornalistas Marcia Carmo e Monica Yanakiew (Editora Planeta), foi lançado há 14 anos, mas alguns dos costumes ali relatados permanecem inalterados. É o caso do jeito argentino de se virar com a moeda estrangeira para proteger-se da desvalorização da moeda local.

Segundo os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (Indec), órgão público responsável pelas estatísticas do país, até meados do ano passado, os dólares em poder da população somavam US$ 245 bilhões, o que equivale a mais de quatro vezes o nível de reservas do país.

A maior parte do dinheiro que está fora do sistema financeiro inclui contas bancárias no exterior. Mas consultores privados costumam calcular que pelo menos 20% da moeda estrangeira nas mãos da população argentina está em esconderijos particulares. Pode ser um cofre, uma tomada falsa ou mesmo embaixo do colchão.

O hábito de guardar economias em moeda americana ganhou força com o chamado "Rodrigazo", em 1975. O então ministro da Economia do governo de Isabel Perón, Celestino Rodrigo, autorizou uma desvalorização cambial de 100%. Por consequência, a inflação anual chegou a mais de 750%.

Escaldada pelos tempos de hiperinflação e pelos confiscos, grande parte da população é até hoje avessa à ideia de deixar o dinheiro em banco. O peso transformou-se no "inimigo" de qualquer plano de vida de uma família. E a moeda americana virou o porto seguro.

Se perguntarem a qualquer argentino por que ele não investe as economias em aplicações do mercado financeiro ele dirá que os rendimentos em bancos estão longe de alcançar a inflação ou a valorização do dólar.

A inflação, portanto, é o que transformou o dólar num fetiche argentino. Durante uma conversa com a imprensa local, há poucos dias, o ministro de Finanças, Luis Caputo, lamentou: "Os estrangeiros acreditam mais na Argentina do que os próprios argentinos".

A situação frustrou os planos do atual governo. Nos últimos dias de Cristina Kirchner no poder, o dólar no câmbio oficial ficou praticamente congelado. Mas no mercado paralelo a moeda americana valia o dobro ou mais. Quem vivia na Argentina à época avisava amigos que resolviam visitar a região para jamais trocar dinheiro em bancos. Agências bancárias nos aeroportos serviam só para o troco do taxi. Ao chegar ao centro da cidade, o turista se deleitava em casas de câmbio ilegais.

O presidente Mauricio Macri acalentava o sonho de acabar com a diferença entre a cotação oficial e a do paralelo. Uma desvalorização para ajustar a diferença e a adoção de câmbio flutuante foram as primeiras medidas quando ele tomou posse, em dezembro de 2015.

Macri eliminou a distância entre o dólar oficial e o paralelo. Mas não conseguiu conter o hábito local de trocar pesos por dólares sempre que sobra algum dinheiro no bolso. Outras moedas, como o euro, também têm seu espaço nas casas dos argentinos. Os que planejam férias na costa brasileira guardam reais. Mas o dólar é o preferido de todos.

Macri também não conseguiu acabar com os chamados "arbolitos" - pessoas que se espalham pelo centro de Buenos Aires para atrair turistas para as casas de câmbio, que continuam com bom movimento.

Dólares passeiam por qualquer cidade argentina em sacolas de supermercado e outros tipos de disfarce. Em geral, ninguém se sente inseguro por carregar pilhas de dinheiro estrangeiro nos bolsos do casaco até o ponto de encontro para o acerto de alguma dívida, como a compra de um apartamento.

Um casal que mora no Brasil, mas queria comprar um imóvel em Buenos Aires, decidiu levar dólares, aos poucos, para a casa de um amigo argentino que mora na cidade. O dinheiro passou meses guardado numa caixa de sapatos, numa prateleira de um guarda-roupa. Certo dia apareceu uma boa oportunidade para comprar o imóvel. Mas o tal amigo havia viajado para a Espanha. O jeito foi fazer uma "vaquinha" com outros amigos até o viajante voltar e abrir o armário e a caixa de sapatos.

Portenhos gostam também de cruzar o Rio da Prata até a cidade do Uruguai mais próxima, Colonia do Sacramento, só para ter o gosto de sacar dólares em caixa eletrônico. E quem pode abre uma conta por lá.

Não faltam histórias de aventuras com dólares em terras argentinas. Já houve ladrões que vasculharam toda a casa de um aposentado que saiu de férias até achar, no sotão, o dinheiro de uma vida inteira de economias. Outro tentou enterrou dinheiro no quintal de uma chácara alugada em Tigre, cidade próxima de Buenos Aires que fica à beira do rio. No dia em que precisou do dinheiro, o poupador desesperou-se ao ver que a umidade havia consumido o papel. Mas para tudo há um jeito. Antes de fechar a compra de um imóvel ele pendurou nota por nota no varal. O sol encarregou-se de dar vida nova ao dinheiro.

 

Marli Olmos é repórter especial

E-mail: marli.olmos@valor.com.br