Correio braziliense, n. 20108, 11/06/2018. Mundo, p. 12
Trump é o pesadelo
Jorge Vasconcellos
11/06/2018
ESTADOS UNIDOS » Jovens brasileiros que chegaram ao país na infância (os “sonhadores”) falam da angústia com o futuro incerto do programa que os protegia da deportação - o Daca, criado por Barack Obama e extinto por decreto pelo sucessor
Sob anonimato, brasileiros que vivem nos Estados Unidos revelaram suas apreensões diante das incertezas sobre a continuidade do Programa de Ação Diferida para Chegadas na Infância (Daca, na sigla em inglês). Criado em 2012 pelo presidente Barack Obama, protege da deportação cerca de 800 mil jovens que entraram ilegalmente no país ainda crianças — os chamados dreamers (“sonhadores”). Em setembro de 2017, o sucessor de Obama, Donald Trump, revogou o Daca por decreto, por considerá-lo “inconstitucional”, mas os efeitos da decisão foram suspensos por três juízes federais. “Essa indefinição é um horror, pois tenho muito a dar para este país. Mas já estou odiando os EUA devido a toda essa incerteza”, disse ao Correio Fernando Santos (nome fictício), 21 anos, cuja família deixou o Brasil, segundo ele, para fugir da violência.
O anúncio da extinção do Daca é um dos componentes mais radicais da política anti-imigração de Trump. Quando tomou a decisão, ele deu prazo ao Congresso até 5 de março de 2018 para aprovar uma alternativa que regularizasse permanentemente a situação.
O presidente se comprometeu a conceder cidadania a 1,8 milhão de jovens imigrantes ilegais — beneficiários ou não do Daca —, mas cobrou dos parlamentares, como contrapartida, a aprovação de US$ 25 bilhões para erguer um muro na fronteira com o México, o que transformou os “sonhadores” em moeda de troca. Como os democratas exigiram um projeto de lei que lidasse exclusivamente com o futuro do Daca, as negociações não frutificaram.
A ofensiva contra o programa é vista com medo e revolta por jovens que, graças a ele, obtiveram permissões temporárias para residir no país, trabalhar, tirar a carteira de habilitação e receber um número do seguro social. Válida por dois anos e renovável por igual período, essa proteção evita a deportação imediada, mas não garante residência permanente nem cidadania futura. A maioria dos beneficiários (76%) é mexicana.
Fernando Santos chegou aos EUA com 5 anos de idade. A família portava vistos de turista e ficou no país após o fim da validade dos documentos. Santos ainda vive com os pais, que, apesar de estarem em situação ilegal, conseguiram trabalho. “Graças ao Daca”, o valor que o jovem desembolsa para estudar é o mesmo cobrado dos que têm residência permanente, o equivalente a um terço do que é pago por não-residentes.
“O Trump é um beócio (grosseiro, boçal) em querer acabar com o Daca”, bradou, irritado pelo fato de já se sentir familiarizado com a cultura, o idioma e a vida nos EUA. Como prevenção para manter a proteção oferecida pelo programa, ele entrou com uma ação judicial. “Ao mesmo tempo, estou buscando outro país para morar, menos o Brasil”, disse, explicando que não fala português nem se identifica com o país onde nasceu.
“Cheguei aos EUA aos 2 anos de idade. Segundo meus pais, eles vieram em busca de melhores condições de vida. Todos nós entramos com vistos de turistas”, disse à reportagem Renata Tavares (nome fictício), hoje com 19 anos. “Graças ao Daca, consegui estudar e trabalhar aqui, onde vivo com meus pais, que perderam a chance de legalização no passado”, acrescentou.
“Acho um absurdo quererem acabar com o Daca, mas creio que ninguém está pretendendo realmente ajudar. Temo ser deportada, porque não tenho nada a ver com o Brasil e nem bem sei falar português. Se for deportada, não terei para onde ir”, afirmou Renata, que procurou deputados democratas em busca de uma solução. “Tenho tanto medo que não tive coragem de solicitar a renovação no programa.”
Depoimento
Lucas Matos (nome fictício), 21 anos, beneficiário do Daca
Eu tinha 14 anos quando viemos para os Estados Unidos, todos com vistos de turistas. Meus pais queriam que eu estudasse aqui. Diante dessa confusão e das incertezas em torno do Daca, tenho a sensação de que estamos sendo usados por manobras políticas. Também os parlamentares democratas só estão nos usando para propósitos políticos. Sigo orando e torcendo para sair logo o muro na fronteira com o México, e para que possamos ganhar o direito de permanecer aqui. Creio que alguma solução vai ser dada. Ainda estou esperançoso. O Daca é muito importante para mim: com ele, consegui tirar a carteira de motorista e hoje posso me deslocar sem riscos de deportação. Moro com meus pais, que são ilegais, mas trabalham — meu pai tem até um jornal. Não pleiteei a renovação no programa porque me disseram que não adianta.
Palavra de especialista
Néstor Rodríguez, estudioso de imigração na Universidade do Texas
Acho frágil a maneira como o governo Trump anunciou a extinção do Daca. Não passa de uma desculpa inventada pelo presidente para cumprir a promessa de campanha de ser duro contra a migração não autorizada. Quanto ao Congresso, só vislumbro solução em caso de vitória democrata nas eleições de novembro. Nesse contexto, causa espécie a adoção da retórica de que os EUA precisam de uma grande muralha na fronteira com o México, enquanto o governo se cala diante dos mais de 300 mil trabalhadores do agronegócio que pagam comissão aos empregadores para conseguir trabalho e, assim, obter o visto de permanência temporária no país, em um grande esquema de corrupção. Os trabalhadores desenvolveram um sindicato e houve conflitos, que resultaram no assassinato de um assalariado.