Correio braziliense, n. 20109, 12/06/2018. Mundo, p. 12

 

A história nas mãos

Rodrigo Craveiro

12/06/2018

 

 

EUA-COREIA DO NORTE » No primeiro encontro entre líderes dos dois países, Donald Trump e Kim Jong-un trocam cumprimentos e admitem o desejo de progresso, em Cingapura. Presidente americano fala em "relação fabulosa", e ditador cita a remoção de obstáculos

A terça-feira começou com a expectativa mundial de uma declaração conjunta assinada pelo presidente norte-americano, Donald Trump, e pelo ditador norte-coreano, Kim Jong-un, e de resultados positivos da cúpula em Cingapura. Ambos fizeram história, às 9h05 de hoje (22h05 de ontem em Brasília), ao se encontrarem e apertarem as mãos — foi a primeira reunião entre os dirigentes dos dois países. Diante de milhares de fotógrafos, os semblantes cerrados deram lugar a um sorriso de Kim, após novo cumprimento. Em clima cordial, Trump tocou o cotovelo esquerdo e as costas do norte-coreano e o convidou a entrar no luxuoso Hotel Capella, na Ilha de Sentosa, acompanhados de dois intérpretes. “Muitas pessoas no mundo pensarão que isso é uma forma de fantasia, de um filme de ficção científica”, disse Kim a Trump.

Depois de outra troca de sorrisos, as primeiras declarações foram dadas em uma sala onde conversariam por 48 minutos, apenas na companhia dos tradutores. “Eu me sinto realmente ótimo. Nós teremos grandes conversas, com tremendo sucesso. Será tremendamente bem-sucedida (a reunião). A honra é minha. Nós teremos uma relação fabulosa, não tenho dúvidas”, disse Trump. Kim respondeu com um sorriso e com otimismo. “Bem, não foi fácil chegar aqui. O passado... e os velhos preconceitos e práticas funcionaram como obstáculos sobre o nosso caminho adiante. Mas nós os superamos e estamos aqui hoje”, comentou o ditador.

“A ótica inicial foi bem positiva, em termos de linguagem corporal e de comentários dos líderes, além do desejo de começar bem o processo. Mas a prova estará no tipo de documento que eles produzirão”, afirmou ao Correio Miles Pomper, analista do Centro para Estudos de Não Proliferação James Martin, em Monterey (na California). Por sua vez, Scott Snyder, especialista em estudos da Coreia pelo Conselho de Relações Exteriores, disse à reportagem que os dois lados têm interesse em ganhar tempo, em reduzir o risco de conflito e em abordar a desconfiança mútua causada por sete décadas de tensão. Depois de deixar a sala onde mantiveram o diálogo bilateral, Kim e Trump fizeram uma breve aparição na sacada. O americano classificou o encontro de “muito bom” e citou o “excelente relacionamento”.

Reunião

Às 10h, Kim e Trump iniciaram a primeira reunião de trabalho com novo aperto de mãos. À mesa, do lado norte-coreano, estavam Kim Yong-chol, braço-direito do ditador; o chanceler Ri Yong-ho; e o ex-ministro das Relações Exteriores Ri Su-Yong. Do lado americano, participaram, além de Trump, o secretário de Estado, Mike Pompeo; o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton; e o chefe de gabinete, John Kelly. A presença de Bolton teve peso simbólico: ao defender o modelo líbio para a desnuclearização da Coreia do Norte, o assessor atraiu a fúria de Pyongyang, o que levou a Casa Branca a suspender temporariamente o evento. A cúpula deveria se estender até as 16h de hoje (5h em Brasília).

Em Seul, o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, suspendeu por 10 minutos os seus compromissos para acompanhar, por meio da TV, os primeiros desdobramentos do encontro, ao lado de sua equipe. “A atenção de todo o nosso povo deve ser direcionada a Cingapura”, admitiu. “Eu passei a noite em claro. Eu, assim como todo o nosso povo, sinceramente espero que será  uma cúpula bem-sucedida, que abrirá nova era de desnuclearização completa, de paz e de nova relação entre a Coreia do Sul, a Coreia do Norte e os EUA.” Moon alertou que há  um “longo processo” até a paz duradoura na Península Coreana.

Antes da cúpula, o chefe da diplomacia dos EUA assegurou que exigiria a verificação de qualquer desmantelamento do programa de armas nucleares de Pyongyang. “Nós vamos garantir que montaremos um sistema suficientemente robusto que nos permitirá verificar esses resultados, e apenas quando ‘V’ (verificação) ocorrer, seguiremos adiante.” Para Miles Pomper, valerá a pena observar se os norte-coreanos farão qualquer “pagamento inicial”, em termos de compromissos. “O desafio dos próximos meses será transformar a promessa em algo específico.”

Tomás Ojea Quintana, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte, disse ao Correio que, em algum momento, Washington e Pyongyang debaterão os direitos humanos, assim como o modo de vida dos norte-coreanos. “Do contrário, Kim se verá fortalecido em qualquer negociação sobre armas nucleares. Se o interesse pelo tema dos direitos humanos desaparecer, a ONU e a comunidade internacional ficarão em posição de fragilidade”, alertou o argentino.

Ontem, Trump transmitiu otimismo, em mensagens no Twitter. “Reuniões entre equipes e representantes estão indo bem. (...) Nós todos saberemos em breve se haverá ou não acordo real.” O republicano enviou um recado aos críticos. “O fato de eu estar realizando um encontro é uma grande derrota para os EUA, dizem os odiadores e perdedores. Temos nossos reféns; os testes, pesquisas e todos os lançamentos de mísseis pararam! (...) Nós ficaremos bem!”. A meia hora da cúpula, Trump anunciou que seu principal assessor econômico, Larry Kudlow, tinha sofrido um enfarte.

Bastidores

Tour com direito a selfie

Ninguém esperava por isso. Às 21h10 de ontem (10h10 em Brasília), Kim Jong-un deixou o Hotel St. Regis e conheceu os pontos turísticos de Cingapura, incluindo os resorts Gardens by the Bay e Marina Bay Sands. Sobre a Ponte do Jubileu, Kim (C) atendeu a um pedido do chanceler cingapuriano, Vivian Balakirshnan (E), e fez uma selfie com ele. O ditador acenou e sorriu para a multidão, entusiasmada. “Nós amamos você, Kim!”, gritavam algumas pessoas.

Visita com direito a bolo

A três dias de completar 72 anos, o presidente dos EUA, Donald Trump (E), recebeu uma torta de presente, ao visitar The Istana, a residência oficial do primeiro-ministro de Cingapura. Trump foi fotografado soprando uma velinha, durante jantar de trabalho oferecido pelo premiê Lee Hsien Loong.

Banheiro a tiracolo

A comitiva de Pyongyang levou a Cingapura um banheiro portátil, de uso exclusivo de Kim Jong-un. A ideia é evitar que agências de inteligência de outros países tentem coletar informações sobre a saúde do ditador. Os excrementos de Kim são acondicionados e levados de volta para a Coreia do Norte. Os guarda-costas também limpam tudo o que ele toca, a fim de impedir que sua impressão digital fique registrada nos objetos.

Quebra de tradição

A mídia da Coreia do Norte rompeu com a tradição antes da cúpula. A TV estatal Central Coreana, da apresentadora Ri Chun-hee (foto); a agência de notícias KCNA; e o jornal Rodong Sinmun publicaram relatos sobre a viagem de Kim. Ri chamou o encontro de “histórico”. Os veículos norte-coreanos não divulgam o paradeiro do ditador até que ele tenha retornado em segurança a Pyongyang.

Um braço amigo

O ex-astro do basquete americano Dennis Rodman (foto) viajou a Cingapura para prestigiar o amigo Kim Jong-un. As imagens de Trump e do norte-coreano o emocionaram. Em lágrimas, ele disse à TV CNN que “Kim é como um garoto grande que ama diversão”. “Hoje é um grande dia. Estou aqui para ver isso. Estou feliz.”

 

Eu acho...

“A paz sem os direitos humanos é frágil. Sem debatê-los, será muito difícil obter um acordo sustentável. O exercírcio dos direitos humanos é o que evita a violência.”

Tomás Ojea Quintana, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte

 

“Kim pode expressar desejo de uma desnuclearização irreversível. A Coreia do Norte já fez compromissos similares, mas não os cumpriu.”

Miles Pomper, analista do Centro para Estudos de Não Proliferação James Martin (em Monterey, na Califórnia)