Correio braziliense, n. 20110, 13/06/2018. Mundo, p. 14

 

Os triunfos de Kim

Rodrigo Craveiro

13/06/2018

 

 

EUA-COREIA DO NORTE » Após cúpula em Cingapura, ditador recebe elogios de Trump, obtém suspensão dos exercícios militares com Seul e aceita convite para visitar Washington. Pyongyang vê "transição radical" nas relações, mas impõe condições à desnuclearização

Até pouco tempo atrás, Kim Jong-un era visto como o chefe de um regime tirânico pária, fadado ao crescente isolamento internacional. Ao ser tratado de igual para igual pelo presidente americano, Donald Trump, o ditador da Coreia do Norte deixou a cúpula bilateral na Ilha de Sentosa (em Cingapura) com uma concessão considerada surpreendente por especialistas: o republicano anunciou a suspensão dos exercícios militares conjuntos com a Coreia do Sul — vistos por Pyongyang como “jogos de guerra”. “Vamos parar as manobras militares, o que nos poupará muito dinheiro, a não ser que as negociações futuras não aconteçam como deveriam”, disse Trump. Faltou avisar o Pentágono. O Comando das Forças Americanas na Coreia do Sul (USFK) “não recebeu nenhuma instrução sobre a implementação ou fim das manobras, inclusive do exercício Ulchi Freedom Guardian”, previsto para o fim do verão boreal, disse um porta-voz da USFK. “Manteremos a postura militar enquanto não recebermos instruções do Departamento de Defesa.”

Além de nada oferecer de palpável em troca, à exceção de um vago compromisso com a desnuclearização, Kim aceitou o convite para visitar os Estados Unidos. “Kim Jong-un convidou Trump a visitar Pyongyang em um momento conveniente, e Trump convidou Kim a visitar os EUA”, informou a agência estatal de notícias norte-coreana KCNA. “Os dois líderes aceitaram o convite um do outro, convencidos de que isso serviria como mais uma ocasião importante para melhorar as relações.” A KCNA classificou o histórico encontro de “uma transição radical nas relações mais hostis do país”, as quais “duraram o período mais longo da Terra”.

Ainda segunda a agência, Kim “disse que, a fim de alcançar a paz e a estabilidade da Península Coreana e realizar sua desnuclearização, os dois países devem se comprometer a evitar antagonismos mútuos, dando lugar ao entendimento”. A declaração conjunta assinada em Cingapura (veja nesta página) apresenta quatro compromissos pactuados, sem cronograma nem metodologia definida: o estabelecimento de novas relações, de acordo com o desejo dos povos das duas nações; a construção de um regime de paz duradouro e estável na Península Coreana; o trabalho rumo à completa desnuclearização da região; e a devolução dos restos mortais de prisioneiros de guerra e de desaparecidos em combate. O texto não faz referência ao caráter “irreversível” e “verificável” do desmantelamento do arsenal atômico — exigência feita pelos EUA antes da cúpula. A comunidade  internacional reagiu ao evento com um otimismo cauteloso (leia na página 15).

“Talentoso”

A julgar pelas palavras de Trump, Kim recebeu tratamento geralmente dispensado a aliados. “Ele é muito talentoso”, afirmou o americano. “Eu creio que ele queira (a desnuclearização). Ele é muito esperto, um negociador muito bom, deseja fazer a coisa certa”, acrescentou. No entanto, o governo dos EUA pretende manter as sanções até que a Coreia do Norte desista das armas nucleares.

Para David Wright, analista da União dos Cientistas Preocupados e codiretor do Programa de Segurança Global, a curto prazo, Kim obteve mais ganhos após o evento em Sentosa. “Isso se deve ao fato ele simplesmente ter se reunido com Trump. Se isso levar a um processo que ajude a reduzir as tensões, a integrar a Coreia do Norte na comunidade internacional e à desnuclearização, então, o vencedor terá sido o americano”, afirmou ao Correio.

Diretor do Programa sobre Política EUA-Coreia do Norte do Conselho de Relações Exteriores (CFR), Scott Snyder admitiu à reportagem o caráter anacrônico da cúpula. “A declaração pública sugere que os Estados Unidos se moveram para mais perto da posição norte-coreana, enquanto Pyongyang não parece ter retribuído.” O sul-coreano Won K. Paik, professor de ciência política da Universidade Central de Michigan, não tem dúvidas sobre o êxito do ditador. “Kim venceu e conseguiu o que queria: a interrupção dos exercícios militares entre Washingto e Seul. Os históricos de acordos firmados pela Coreia do Norte não são bons. O regime tende a trapacear. Por enquanto, o que temos são palavras de Kim, tratado de forma igual por Trump. O compromisso, por meio de ações, será um bom começo.”

Direitos humanos

Trump revelou, sem dar detalhes, que debateu o tema dos direitos humanos com Kim. “Isso foi discutido. Será discutido mais no futuro — os direitos humanos. (…) Foi discutido de forma relativamente breve, se comparado com a desnuclearização. (...) Eles farão coisas, e acho que querem fazer coisas”, disse. Por telefone, o argentino Tomás Ojea Quintana, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte, afirmou à reportagem que considera importante a promessa de repatriação de soldados mortos durante a Guerra da Coreia. “Isso tem uma dimensão de direitos humanos que me parece muito positiva. Trump falou sobre o sequestro de  japoneses e de outros estrangeiros. A declaração pública de que houve breve discussão sobre os direitos humanos é importante e valiosa. Esperamos que ambos construam uma proposta concreta sobre o assunto.”

Segundo Quintana, o comunicado conjunto é “muito positivo, obviamente histórico” e mostra o desejo de eliminar as armas nucleares da Península Coreana. “O objetivo do documento é o de procurar a paz, a prosperidade e a segurança do regime da Coreia do Norte”, explicou.

 

Frases

“A fim de alcançar a paz e a estabilidade da Península Coreana e realizar sua desnuclearização, os dois países devem se comprometer a evitar antagonismos mútuos”

Kim Jong-un, itador da Coreia do Norte, citado pela agência estatal KCNA

 

“Ele é muito talentoso. (…) É muito esperto, um negociador muito bom, deseja fazer a coisa certa”

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos

Eu acho...

“O mundo saiu como vencedor. Uma interação como a ocorrida em Cingapura reduz tensões e o potencial de um conflito militar. Foi um encontro introdutório, tanto para Trump quanto para Kim. O documento assinado por ambos provavelmente facilitará interações mais substanciais. Ambos os lados mantêm a cautela.”

Michael Madden, analista do Instituto Europa-Coreia da Universidade Johns Hopkins e diretor do NK Leadership Watch

Análise da notícia

Troféus para todos

» Silvio Queiroz

O acordo assinado em Cingapura parece pertencer à categoria daqueles que, ao menos de imediato, rendem ganhos para todas as partes — no caso, Donald Trump e Kim Jong-un. Adiante, a médio e longo prazo, tudo depende de decifrar os propósitos de cada um.

Uma leitura inicial sugere que o terceiro governante da “dinastia” comunista de Pyongyang obteve aquilo que o pai e o avô perseguiram por mais de meio século: o reconhecimento da Coreia do Norte como um Estado soberano de pleno direito. O preço do troféu é conhecido sobretudo pelos súditos, que pagaram com décadas de penúria pelo fator que desponta como predominante para o sucesso diplomático: Kim Jong-un dispõe de um arsenal nuclear para colocar sobre a mesa de negociações.

Para além dos resultados celebrados hoje, porém, restam múltiplas incógnitas. Como se fará a desnuclearização da Coreia do Norte? Como serão definidas e monitoradas as contrapartidas de segurança oferecidas por Trump ao “homenzinho dos foguetes”? Como serão atendidas as preocupações dos vizinhos, como Coreia do Sul e Japão?

Por ora, Trump e Kim voltam para casa, cada qual com os troféus de própria escolha

Bastidores

Almoço requintado...

O almoço de trabalho do presidente americano, Donald Trump, e do líder norte-coreano, Kim Jong-un, teve como entradas coquetel de pitus com salada de abacate, kerabu (salada de manga verde) com polvo fresco e “oiseon”, um pepino recheado tradicional da Coreia. Como pratos principais, os dois degustaram costela bovina e carne de porco crocante e ácida, acompanhadas de arroz frito Yangzhou, batata dauphinois e brócolis cozido no vapor. Também havia a opção de “daegu jorim”, um bacalhau assado com soja. A sobremesa incluía ganache de chocolate amargo, sorvete de baunilha e “tropezienne”, uma torta feita com massa de brioche e recheada com creme.

...com direito a brincadeira

“Por favor, sente-se, presidente”, afirmou Trump a Kim, apontando a cadeira à sua frente, do outro lado da mesa. “Todos pegando uma boa foto? Nós nos parecemos legais, bonitos, magros e perfeitos?”, emendou, se dirigindo aos fotógrafos. Depois de escutar tradução da intérprete, o norte-coreano não esboçou nenhuma reação. Pareceu não entender a brincadeira feita pelo republicano.

Com a marca de Hollywood

Para sensibilizar Kim, Trump mostrou ao norte-coreano um vídeo promocional feito pela Casa Branca ao estilo Hollywood, que retrata ambos como heróis. “Sete bilhões de pessoas habitam o planeta Terra. Das que estão vivas hoje, apenas um pequeno número deixará impacto duradouro. E somente muito poucas tomarão decisões ou ações que renovarão sua pátria ou mudarão o curso da história”, afirma o narrador, enquanto aparecem imagens de Kim e Trump. Surgem cenas históricas da Guerra da Coreia e da Zona Desmilitarizada. “Da escuridão, pode vir a luz. Uma luz de esperança pode queimar, brilhante.” O filme continua com cenas de norte-coreanos felizes, dançando, e do aperto de mãos entre Kim e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in. “Destiny Pictures apresenta uma história de oportunidade. Uma nova história, um novo começo. De paz. Dois homens, dois líderes, um destino”, complementa o locutor. O filme prossegue com referências ao progresso, à abundância de recursos, à inovação tecnológica — um meio de convencer Kim ao acordo.

Nobel prematuro

Os avanços da cúpula poderão valer o Nobel da Paz para Trump e Kim? Especialistas consultados pela agência France-Presse admitem a possibilidade, mas creem que a distinção seria prematura. “Se isso levar a um desarmamento real na Península Coreana, será muito difícil não dar o prêmio”, comentou Asle Sveen, historiador especializado em Prêmio Nobel. “A questão é saber se fizeram o bem o bastante para limpar o sangue. Nem Trump, nem Kim deram provas suficientes para levar o prêmio”, disse Henrik Urdal, diretor do Instituto de Pesquisa para a Paz em Olso (Prio).