Valor econômico, v. 19, n. 4499, 09/05/2018. Brasil, p. A2.
Um mundo perigoso para a Argentina
09/05/2018
Depois de elevar a taxa de juros em quase 13 pontos percentuais, para 40% ao ano, em apenas uma semana, o banco central da Argentina não tinha outra saída a não ser pedir socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Trata-se de um clássico dos países da região, periodicamente envolvidos em crises cambiais.
O efeito-dominó funciona assim: os Estados Unidos elevam os juros para combater a inflação; os capitais aplicados nos emergentes batem em revoada para buscar segurança em títulos do tesouro americano; o dólar se valoriza e torna-se escasso nas economias mais frágeis; as moedas locais, consequentemente, se desvalorizam; começa a faltar dólar para pagar a dívida externa; para atrair dólares, conter a fuga de capitais e interromper a depreciação da moeda, os bancos centrais jogam os juros na lua; os mercados se acalmam, enquanto o governo ganha um tempinho para dar um passo politicamente difícil - negociar um empréstimo com o FMI -, especialmente neste cantinho do planeta, onde as pessoas acham que os responsáveis por nossas mazelas estão localizados em dois números da avenida Pennsylvania, em Washington: no 1.600, onde fica a Casa Branca, e no 1.900, sede do Fundo.
A Argentina cumpriu exatamente esse roteiro e, agora, está na fase de pedir dinheiro ao FMI. O que este faz é conceder um financiamento para reforçar as reservas cambiais do país. O objetivo é mostrar ao mercado, notoriamente aos fundos de hedge, que eles podem perder muito dinheiro caso promovam ataques especulativos contra a moeda da nação socorrida. Mas o FMI só libera os recursos se o país concordar em se submeter a um rigoroso ajuste fiscal, pré-condição para sair da crise.
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O dinheiro do Fundo funciona como uma ponte para a travessia do momento mais difícil de uma economia atingida por crise cambial. Isto significa que o país que pede ajuda ao FMI tem que correr para fazer os ajustes necessários. Não é fácil. Crises cambiais não surgem por geração espontânea, são produto de problemas estruturais nunca enfrentados, de políticas equivocadas ou de crises globais, como as de 1929 e 2007-2008. Convencer a sociedade de que terá que passar por um rigoroso ajuste é tarefa árdua.
Os governantes não costumam informar ao distinto público que, na maioria das vezes, a confusão resulta de erros que eles cometeram, a não ser quando há mudança de gestão, como no caso do impeachment de Dilma Roussef - Michel Temer se viabilizou para tomar o lugar da ex-presidente porque, meses antes de sua deposição, apresentou-se como alternativa; por essa razão, assumiu o cargo em maio de 2016 com capital político suficiente para aprovar no Congresso medidas impopulares.
Fazer ajuste fiscal é diminuir a renda disponível tanto dos trabalhadores quanto das empresas. Isso é feito por meio de aumento de imposto e corte de despesas. O dinheiro é usado para cobrir gastos excessivos do setor público e suas dívidas. A conta, portanto, é paga por todos, mas recai mais sobre quem tem menos - os tributos embutidos nos produtos que os pobres consomem são mais altos e os cortes de gastos afetam mais quem não tem representante no Planalto Central.
Não deve ser mesmo fácil dizer à sociedade que a vida vai piorar muito antes de melhorar. Ninguém quer pagar a conta e, ainda mais, sozinho. Nos momentos de crise, o que os políticos latino-americanos fazem, então, é demonizar o FMI e o governo americano, acusando-os de serem os responsáveis por nossa danação. É verdade que o FMI já errou muito no diagnóstico e na aplicação de remédios em economias sob forte turbulência - talvez, poucos se lembrem, mas o Fundo se posicionou, em 1994, contra o Plano Real, que acabou com a inflação crônica no Brasil; em 1998, rejeitou ajuda ao país durante crise provocada pela moratória da Rússia, mas o auxílio acabou saindo porque o então presidente Bill Clinton ordenou que se fizesse isso, uma vez que os EUA são o único sócio da entidade com poder de veto.
O recurso ao FMI é inevitável no destino da Argentina. O governo do presidente Mauricio Macri assumiu o comando de um país em frangalhos. A situação encontrada era muito pior que a deixada pelo trágico governo Dilma. Ao contrário de Temer, Macri optou por um ajuste gradual. Aqui, uma parte difícil do ajuste - o reajuste de tarifas públicas que vinham sendo controladas na marra - foi feita ainda na gestão Dilma, levando a inflação a quase 11% em 2015.
No país vizinho, Macri gostou quando o chamaram de "liberal com coração". Ganhou essa alcunha porque decidiu adotar a política do meio-termo. Corrigiu as tarifas bem abaixo da necessidade, adotou uma política monetária frouxa para, em tese, acelerar o crescimento e, na área fiscal, a mais relevante da política econômica de qualquer país, optou por um gradualismo perigoso - os subsídios em diversos segmentos da economia, por exemplo, foram mantidos.
A Argentina aproveitou a reconquista de um certo prestígio na comunidade financeira internacional para captar no exterior a impressionante soma de US$ 100 bilhões. Trata-se, todavia, de uma necessidade: também diferentemente do Brasil, que financia seu déficit externo com dinheiro de investimento estrangeiro direto (IED) no setor produtivo nacional, os argentinos pagam as contas com o exterior tomando mais dívida... no exterior.
O cálculo de Macri era político: o ajuste devagar-e-sempre não o tornaria impopular, ele seguiria fazendo o ajuste e, agora, aceleraria o passo da atividade. Com isso, chegaria a 2019 com amplas chances de ser reeleito. O problema é que, aos olhos dos investidores, naturalmente mais avessos a risco no momento em que o juro real de títulos da dívida americana está ficando tão atrativo quanto o de países emergentes, a Argentina apresenta déficits gêmeos (fiscal e externo) elevados. Ter esses dois déficits mostra que o país pode ter dificuldade para se financiar tanto interna quanto externamente, uma evidência de que está vulnerável.
No início do ano, Fábio Giambiagi, o argentino mais brasileiro destas plagas, mas que, mesmo tendo crescido por aqui, fala Português com forte acento castelhano, visitou o país vizinho e voltou preocupado. Ligou para a redação e advertiu: "A Argentina quer acelerar o crescimento agora, mas tem duas restrições já na largada: déficit em conta corrente (5% do PIB) e inflação (25%) elevados". Bingo!
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras
E-mail: cristiano.romero@valor.com.br