Correio braziliense, n. 20156, 29/07/2018. Mundo, p. 14

 

Mares bravios

Silvio Queiroz

29/07/2018

 

 

UNIÃO EUROPEIA » Com os Governos pesos pesados do continente atingidos por uma epidemia de instabilidade, o comando político do bloco navega no rumo de uma "tempestade perfeita", sob pressão nas frentes interna e externa

O comando político da União Europeia (UE) e alguns dos principais governantes do continente, em especial os da Alemanha e da França, examinam com alguma apreensão o calendário, de olho em uma sucessão de desafios que se anunciam para os próximos meses em duas frentes — a doméstica e a externa. A chanceler Angela Merkel e o presidente Emmanuel Macron, que seguram a quatro mãos o leme, recebem do posto de observação do navio comunitário a mensagem de “tempestade à vista”. Mares tormentosos ameaçam o projeto de integração acalentado há sete décadas. Do Mediterrâneo, as ondas lançam na costa  levas sucessivas de imigrantes que alimentam a ascensão contínua de forças populistas e nacionalistas, uma extrema-direita que não disfarça a hostilidade à UE. Do Atlântico, avança Donald Trump: na sua presidência, o aliado americano investe sem reservas na fragmentação do Velho Mundo e insinua um flerte com a Rússia, que assedia o bloco pelo flanco oriental.

Na agenda de Bruxelas, onde está o quartel-general europeu, duas datas se destacam. Março é a data marcada para a efetivação do Brexit, o processo pelo qual o Reino Unido se torna o primeiro tripulante a abandonar o barco. Dois meses depois, eleitores dos 27 países-membros irão às urnas para renovar o Parlamento Europeu, e os partidos populistas despontam como sérios candidatos a desfilar como vedetes da eleição, a julgar pelos resultados recentes em eleições nacionais: participam do governo na Itália, na Áustria e na Hungria, entre outros países; lideram a oposição na Alemanha e na França; atraem para o seu discurso anti-imigração forças históricas da direita e do centro.

“O que se vê é uma grande crise dos partidos tradicionais, que é inevitável”, diagnostica o cientista político francês Pascal Perrineau, do prestigiado Instituto de Estudos Políticos de Paris (leia a Entrevista). Como resultado da fragmentação crescente, contam-se nos dedos os governos europeus que desfrutam de maiorias estáveis — e alguns dos pesos pesados da UE navegam sob a ameaça persistente do naufrágio (veja infografia). Mesmo Macron, fenômeno eleitoral que transformou um partido recém-fundado na principal força parlamentar, sofre o impacto do primeiro escândalo político de vulto, envolvendo o chefe de segurança do Palácio do Eliseu.

É nesse quadro que entra em cena o presidente dos Estados Unidos, entusiasta de primeira hora do Brexit e adversário quase aberto da primeira-ministra britânica, Theresa May — a ponto de desembarcar em Londres,  no início do mês, elogiando em entrevista o maior rival dela no Partido Conservador, o ex-chanceler Boris Johnson. A chanceler alemã é outro alvo recorrente de Donald Trump, que, na mesma viagem à Europa, aproveitou uma cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para, uma vez mais, cobrar dela e dos demais sócios mais gastos com a pasta da defesa. “Em 2017, no primeiro encontro que teve com Merkel, Trump entregou a ela um bilhetinho no qual, segundo transpirou, alegava que a Alemanha ‘deve’ aos EUA US$ 300 bilhões nessa rubrica”, lembra Amy Myers Jaffe, pesquisadora do Conselho de Relações Exteriores.

“Os ataques de Trump aos aliados da Otan e seu questionamento ao princípio da segurança coletiva foram ainda mais danosos na reunião que teve (há duas semanas) com o presidente da Rússia, Vladimir Putin”, observa Philip Gordon, que integrou a equipe de política externa da Casa Branca no governo de Bill Clinton. Na cúpula de Helsinque, o presidente americano derramou empatia com o chefe do Kremlin e chegou a dizer que a relação com Moscou “é mais fácil” do que com a Otan. “Se o presidente americano tem receio de expor em público diferenças com a Rússia, como os aliados podem contar com ele para confrontá-la, eventualmente, em um campo de batalha na Europa?”, questiona-se Gordon.

Frase

“O que se vê é uma grande crise dos partidos tradicionais, que é inevitável”

Pascal Perrineau, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencesPo)