Correio braziliense, n. 20150, 23/07/2018. Mundo, p. 12

 

A jogada do czar

Jorge Vasconcellos 

23/07/2018

 

 

RÚSSIA » Vladimir Putin aposta no sucesso da Copa do Mundo para driblar o isolamento diplomático do Kremlin, mas esbarra nas repercussões desfavoráveis das denúncias de espionagem contra os Estados Unidos e de uso de agentes químicos no Reino Unido

Como ocorreu com as Olimpíadas de Inverno de Sochi, em 2014, uma impecável Copa do Mundo de futebol, quatro anos depois, não foi suficiente para aplacar o isolamento da Rússia e do presidente Vladimir Putin no cenário internacional. Se a anexação da península ucraniana da Crimeia, no mês seguinte aos Jogos de Inverno, foi respondida com sanções econômicas e outras represálias a Moscou, suspeitas de envenenamento, espionagem e interferência nos rumos políticos de outros países, antes e depois do Mundial da Fifa, aprofundaram a pressão e o repúdio externo.

A imagem de uma Rússia moderna, acolhedora e competente na promoção de um evento gigantesco, como a Copa, permanece viva na memória de milhões de torcedores. Putin conseguiu enviar ao Ocidente a mensagem desafiadora de que o império de séculos resiste ao cerco. Acostumado a explorar esse isolamento como fator de popularidade interna, o chefe do Kremlin não tem esboçado qualquer gesto para corrigir um estilo nada diplomático de se relacionar com o mundo.

“Em ambas as competições, a Rússia demonstrou que pertence à elite mundial e exibiu competência, mas não conseguiu alavancar isso para o poder brando, porque continuou a se envolver exatamente no tipo de comportamento que todos receiam ou temem”, disse ao Correio Yuval Weber, professor de estudos russos e euro-asiáticos do Wilson Center e da Universidade de Harvard, nos EUA. “As pessoas podem dizer, então, que a Rússia é boa para sediar eventos, mas que, em termos de política mundial, é melhor tomar cuidado”, acrescentou.

Cúpula

Após o apito final no estádio Luzhniki e a entrega da taça para a França, Putin viajou para Helsinque, para uma reunião cujas repercussões negativas parecem não ter fim. A cúpula com o presidente americano, Donald Trump, que tinha como objetivo oficial discutir a retomada das relações bilaterais, acabou por atrair uma avalanche de críticas e desconfianças. Ninguém parece ter aceitado a cordialidade entre os dois líderes, justamente quando se fortalecem os indícios do envolvimento de funcionários russos em atividades de espionagem nos Estados Unidos.

A três dias da cúpula, 12 agentes da inteligência militar russa foram indiciados pelo Departamento de Justiça dos EUA, acusados de tentar influenciar os resultados da eleição presidencial vencida por Trump em 2016. Na véspera do encontro, a russa Maria Butina, 29 anos, foi presa em Washington sob suspeita de se infiltrar em organizações americanas com o intuito de interferir no sistema político.

O tom afável que dominou a cúpula de Helsinque tem despertado em muitos a curiosidade de saber o que impediu Trump de recriminar Putin pela ingerência russa na democracia americana. As especulações incluem até a possibilidade de chantagem por parte do Kremlin, que teria em mãos registros comprometedores sobre a conduta pessoal do inquilino da Casa Banca. Fala-se, inclusive, sobre um memorando de um ex-agente da inteligência britânica que traria os detalhes de um animado encontro entre o magnata americano e prostitutas, em Moscou.

A aproximação com Trump tem outro componente espinhoso para Putin. O encontro de Helsinque se seguiu à viagem de uma semana do presidente americano pela Europa, marcada por desavenças com importantes aliados, como a chanceler alemã, Angela Merkel, a premiê britânica, Theresa May, e os parceiros da Otan, a aliança militar criada após a Segunda Guerra Mundial para se contrapor à ameaça então representada pela União Soviética.

Veneno

Putin ainda tem de lidar com as suspeitas de envolvimento do Kremlin em casos recentes de contaminação por um agente químico soviético no Reino Unido, tendo como vítimas o ex-espião russo Sergei Skripal e a filha, além de um casal britânico. “A Rússia vem realizando regularmente envenenamentos e assassinatos em países estrangeiros”, declarou à reportagem Peter J. S. Duncan, professor de política e sociedade russa na University College London.

“Os membros da Otan e da UE se alinharam ao Reino Unido no caso Skripal. Para contrariar os esforços de Putin e Trump para enfraquecer a Otan e a UE, é preciso abordar as causas profundas da insatisfação na Europa, exploradas por populistas de direita, muitas vezes aliados de Moscou.”

Palavra de especialista

A guerra cibernética da Rússia contra os EUA e vários países da Europa Ocidental, em particular a intromissão na eleição presidencial americana de 2016, em favor de Donald Trump, pode levar o Partido Democrata a assumir o controle da Câmara dos Deputados dos EUA, nas eleições de novembro. Se isso acontecer, a Câmara poderá abrir um processo de impeachment contra Trump, por sua recusa a denunciar Vladimir Putin pelos danos causados à democracia americana e a tomar medidas para prevenir futuras interferências russas.

Além disso, quando o relatório final do procurador especial Robert Mueller for publicado, ele detalhará todas as maneiras pelas quais o Kremlin interferiu nas eleições, com o possível conhecimento e conluio da campanha de Trump. Tudo isso será má notícia para o presidente e seu partido.

Quanto à Rússia, não haverá conseqüências internas do conflito atual com Washington. Putin governa com mão de ferro. A dissidência não é tolerada. Os partidos políticos são impotentes. A Duma e o sistema judiciário são o presidente e sua equipe.

Mas a Federação Russa, provavelmente, sofrerá consequências negativas na arena internacional: credivelmente acusado de interferir no sistema político de muitos países, orquestrando assassinatos em países estrangeiros, invadindo países soberanos e anexando um território, o país está disposto a buscar políticas agressivas direcionadas a outros estados — particularmente, na forma de ciberespionagem.

William Keylor, professor de história e relações internacionais da Universidade de Boston (EUA)

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FBI: assessor era espião

23/07/2018

 

 

A polícia federal americana divulgou novos indícios de influência russa na disputa presidencial. Segundo o FBI, Carter Page, ex-assessor de política externa da campanha de Donald Trump, estava “colaborando” com a Rússia enquanto trabalhava para influenciar as eleições de 2016. Trump reagiu irritado à revelação do documento elaborado pelo Foreign Intelligence Surveillance Court (FISC), o organismo americano encarregado de controlar a vigilância de espiões.

Segundo o presidente, as escutas telefônicas sobre seu ex-assistente são parte de uma conspiração partidarista e ilegal, com a utilização, pelo FBI, de informações fornecidas pelo partido Democrata. Trump escreveu, em sua página no Twitter, que  sua campanha foi “ilegalmente” espionada para beneficiar a concorrente. “Pode-se dizer cada vez mais que a Campanha Presidencial de Trump foi ilegalmente espionada (vigiada) para que a desonesta Hillary Clinton obtivesse benefícios políticos.”

O documento foi redigido um mês antes da vitória de Trump, em outubro de 2016. Nele, o FBI diz acreditar que “os esforços do governo russo são coordenados com Page e, talvez, com outros indivíduos associados à campanha do Candidato #1”, em referência ao postulante republicano. “Page estabeleceu relações com funcionários do governo russo, incluindo agentes da Inteligência”, acrescenta o texto. O ex-assessor, que até agora não foi acusado formalmente, declarou ontem, à CNN, que é inocente: “Não, nunca fui agente de um poder estrangeiro”.

Butina

A revelação do documento da FISC acontece pouco mais de uma semana depois de o procurador especial encarregado de investigar as ingerências do Kremlin nas eleições americanas, Robert Mueller, indiciar 12 agentes da inteligência russa, acusados de ter hackeado os computadores do Partido Democrata e do comitê de Clinton. Nesse mesmo período, foi presa, em Washington, a russa Maria Butina, 29 anos, acusada de se infiltrar em uma organização pró-armas, na tentativa de influenciar a política externa americana em favor de Moscou.

Segundo a Reuters, Butina fez contatos em Washington mais estratégicos do que o imaginado. Ela teria participado de encontros em 2015 entre uma autoridade russa visitante e duas autoridades sêniores do Banco Central dos EUA e do Departamento de Tesouro. As reuniões foram reveladas por várias pessoas familiarizadas com as sessões e são relatadas em um documento de um centro de estudos de Washington que as organizou. Stanley Fischer, vice-presidente do banco na época, e Nathan Sheets, então subsecretário do Tesouro para Assuntos Internacionais, teriam participado dos encontros.