O globo, n. 30964, 17/05/2018. País, p. 6

 

O presidente se achava imune a uma investigação

Jailton Carvalho e Rodrigo Janot

170/05/2018

 

 

Um ano depois de vir à tona o mais impactante acordo da Lava-Jato, que resultou em duas denúncias contra o presidente da República, o ex-procurador-geral Rodrigo Janot reafirma a importância das delações dos irmãos Joesley e Wesley Batista e se espanta co

Um ano depois, qual sua avaliação dos resultados do acordo de delação dos executivos da J&F?

Foi um acordo importantíssimo para desvendarmos toda a organização criminosa que se apropriou do poder público brasileiro. As informações, provas e a proatividade dos colaboradores foram medidas nas denúncias feitas contra o presidente em exercício, Michel Temer, e nas investigações que se seguiram. Ele responde a duas denúncias e duas investigações criminais, que decorrem dessa colaboração. Acredito que essa foi uma das colaborações premiadas que mais auxiliaram o combate à corrupção no Brasil.

Mas o que se passou depois reduziu essa importância?

O que se passou depois foi um outro fato. Os colaboradores não souberam se comportar à altura e agora sofrem a possibilidade de ter os acordos rompidos, o que não prejudica as provas obtidas. Nós tivemos dois acordos de colaboração premiada muito sensíveis. O primeiro, da Odebrecht, pela sua extensão, teve 78 colaboradores. Exigiu do Ministério Público Federal muita aplicação e criatividade. Mas esse da J&F foi o acordo em que nós chegamos à cabeça da organização criminosa, por isso foi muito importante. Atingiu um presidente da República em exercício, que, depois de três anos e meio da Lava-Jato, continuava praticando atos que queria. Achava que era imune a qualquer investigação do Ministério Público. E nenhum cidadão é. Chegamos ao virtual futuro presidente da República (senador Aécio Neves), que também continuava praticando atos e se acreditava imune. Esse é o quadro que eu desenho de um ano depois dessa colaboração da J&F.

Mas Temer permanece presidente, e Aécio permanece senador. Isso não dá a impressão de que estão passando ao largo das investigações decorrentes do acordo?

A gente precisa entender as duas situações. A situação do presidente Michel Temer, em razão da relevância do cargo que ocupa, para que seja processado criminalmente necessita autorização da Câmara. E a Câmara, fazendo um juízo político, não permitiu o prosseguimento do processo penal, que já existe. Então, ele vai responder depois que deixar o seu mandato. Quanto ao senador Aécio Neves, ele é réu em um processo penal admitido pelo Supremo Tribunal Federal em razão da colaboração premiada dos executivos da J&F. O Brasil mudou, tem indignação na rua e tem uma atuação profissional no campo judicial.

Se há indignação (nas ruas) e atuação profissional (no campo judicial), o que sustenta o presidente no poder?

Essa pergunta tem que ser feita à Câmara dos Deputados, que não permitiu o prosseguimento dos dois processos penais contra Temer. Processos inaugurados com provas, não em indícios, que decorreram da colaboração premiada desses colaboradores. Malas de dinheiro circulando em São Paulo, “tem que manter isso, viu?”, isso não é pouco. Isso é muito.

Qual sua expectativa quanto aos desdobramentos dessas duas frentes de investigação?

Essa investigação não pertence à polícia, ao órgão acusador, à defesa, a ninguém. É uma investigação que está sob os olhos da sociedade brasileira. Mais do que isso: todos os países estão de olho nisso. No Brasil, temos uma imprensa livre. A imprensa é o quarto poder no país. Como dizia um juiz da Suprema Corte americana nos anos 1800, o melhor detergente nessas situações chama-se luz. E a imprensa brasileira põe luz nesses fatos todos. Não acredito em regressão nessas investigações.

Antes de deixar a PGR, o sr. pediu a rescisão do acordo de colaboração dos executivos da J&F. Não foi uma medida muito dura?

O que a gente tem de concreto nessa colaboração é que fizemos um acordo. O Ministério Público foi muito criticado por ter dado imunidade a essas pessoas. Uma das cláusulas do acordo era que não houvesse omissão ou mentira. Os acordos com esses criminosos são feitos a partir de uma relação de confiança. O Estado acusador confia que o criminoso colaborador se redimiu. Está falando sobre a organização criminosa a que pertence, está relatando crimes que a organização praticou, está entregando participantes da organização. Quando omitem ou mentem sobre fatos, o Estado não pode fingir que não deve reagir a esse tipo de atitude.

Mas os advogados alegam que eles entregaram aqueles áudios (autogravações de conversas com referências a ministros do STF e ao próprio procurador-geral) no último dia, mas dentro do prazo. Não teria havido omissão.

O que os advogados não dizem é que esse áudio veio dentro de um anexo sobre um senador (Ciro Nogueira), que não tinha nada a ver com esse áudio. Era um outro fato. E por que fizeram isso? Por que não disseram que tinha aquele áudio ali que envolvia uma situação que não era aquela do senador. Entendemos o seguinte: como era comum nos acordos espúrios de políticos e empresários colocar jabutis em medidas provisórias, achamos que era um jabuti colocado em um anexo da nossa colaboração. Por isso, porque tentaram enganar o Estado acusador, é que eu propus a rescisão ao acordo de colaboração.

Essa sua decisão acabou dando argumento para a defesa do presidente. Se os delatores tinham mentido ou omitido as acusações seriam inconsistentes. O comportamento não retilíneo dos delatores enfraqueceu a denúncia ?

Não. As coisas são diferentes. Como é que pode haver enfraquecimento da denúncia contra o presidente da República se contra ele existem provas? A pergunta que se tem que fazer é: existem provas contra o presidente da República em exercício por atos criminosos por ele praticados? A imprensa divulgou áudios, vídeos. Se isso não é suficiente, eu me mudo para Marte.

O ex-procurador Marcello Miller, que atuou como advogado dos executivos, foi criticado e acusado de cometer crimes. Hoje, no seu entendimento, o ex-procurador cometeu mesmo algum crime?

Na época, com os elementos que tínhamos, eu acredito que sim, que ele fazia parte dessa organização criminosa, como fazia parte o presidente da República e esses executivos da J & F. Hoje, com o quadro fático que temos — já saí dessas investigações desde setembro —, eu acredito que ele tenha cometido atos não éticos, mas estou convencido que crime ele não cometeu.

Qual sua expectativa em relação às eleições tendo em vista que a Lava-Jato gira em torno de políticos e dinheiro desviado?

A primeira coisa é esse discurso falso de que as investigações criminalizaram a política. A investigação não criminaliza político. Estou convencido de que a mudança desse cenário corrupto, esse cenário destruído, virá a partir de uma reforma política profunda. Então, a mudança virá pela política. A investigação não criminaliza a política. Ela busca criminosos que se escondem atrás de mandatos políticos.