O globo, n. 30963, 16/05/2018. País, p. 3

 

Água, vinho e software

Patrik Camporez e Robson Bonin

16/05/2018

 

 

Por R$ 8 milhões, INSS usa empresa que tem dois funcionários e armazena bebidas na sede

-BRASÍLIA- Engradados de água mineral e prateleiras com garrafas de vinho. Uma funcionária que se reveza entre o atendimento e a organização do pequeno estoque de rótulos de tintos numa acanhada sala comercial, no térreo de um prédio residencial em Brasília. É nesse cenário que funciona a RSX Informática LTDA, um estabelecimento que se parece com uma distribuidora de bebidas, mas que, no setor de pagamentos da gestão do presidente Michel Temer, mais especificamente no INSS, está registrada como companhia especializada no desenvolvimento de softwares de última geração. Sem capacidade para tocar qualquer dos contratos no governo — como um dos sócios admite ao GLOBO —, a empresa faturou, nos últimos anos, cerca de R$ 10 milhões sem produzir um bit de informação.

No mês passado, a RSX fechou um contrato de R$ 8,8 milhões para vender ao INSS um programa de computador e fornecer treinamento a servidores sobre como utilizá-lo. Depois de liberar R$ 4 milhões à empresa, sem obter nenhum serviço em troca, o presidente do INSS, Francisco Lopes, admitiu ter autorizado o gasto milionário sem sequer verificar a procedência da RSX. Depois da publicação da reportagem no site do GLOBO, Lopes divulgou nota anunciando o cancelamento do contrato.

— As diligências deveriam ter sido feitas antes da contratação? Isso eu concordo. Eu conversei com os meninos (assessores do gabinete) e perguntei se eles fizeram diligência na empresa. Disseram que não foram porque outros órgãos já haviam contratado a mesma empresa. Determinei (após a apuração do GLOBO) uma diligência no contrato e que eles peçam o currículo de todas as pessoas que vão trabalhar no nosso contrato, se elas têm vínculo com a empresa e qual a capacidade técnica deles — disse o presidente do INSS.

A RSX Informática tem apenas dois funcionários — um no estoque de vinhos e um técnico de informática — e está muito longe de ter capacidade operacional exigida pelo governo para honrar seus contratos. A empresa vem se valendo de um “atestado de capacidade técnica” expedido pelo Ministério do Trabalho, segundo o qual teria desenvolvido 66 produtos ao órgão. Procurado, o ministério não quis comentar os critérios usados para ter emitido o documento.

 

RELATÓRIO APONTAVA RISCOS

Na internet, para demonstrar expertise e impressionar possíveis clientes, a RSX apresenta em seu site uma lista de estatais, entidades de classe empresarial e órgãos públicos que teriam contratado seus serviços. A Petrobras e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), por exemplo, seriam clientes. Procuradas, ambas as instituições negaram ter negócios com a RSX. “Não existem registros de contratos celebrados entre a empresa RSX Informática LTDA e a Petrobras”, disse a estatal, em nota. “Informamos que a Confederação Nacional da Indústria não firmou contrato algum com a empresa RSX Informática Ltda”, afirmou, por meio de nota, a CNI.

Um dos representantes da RSX, Raul Maia admite que a empresa não produz o software que vende.

— A gente compra a licença e revende para o cliente. Além da intermediação, nossa função vai ser a execução do serviço. Nós somos distribuidores da solução — afirmou.

A ideia de contratar a RSX e pagar a bolada milionária pelo programa surgiu no gabinete do presidente do INSS. Valendo-se de uma ata de preços, uma modalidade de compra do governo que dispensa licitação, Lopes determinou que a empresa fosse remunerada para construir o tal programa capaz de fazer varreduras no sistema do órgão e identificar vulnerabilidades.

Quando verificou o volume de recursos envolvidos no negócio e o tipo do programa de computador que seria comprado, a área técnica do INSS tratou de alertar o presidente para a falta de amparo técnico, a possível inutilidade da compra para o órgão e o risco de desperdício de recursos públicos. Um relatório de 25 páginas assinado por oito técnicos apontou, entre outras questões, que não havia sido “identificada a necessidade de contratação do software”.

— O sistema foi adquirido sem prova de conceito, ou seja, sem mostrar tecnicamente qual o ganho, de fato, o programa traria para o INSS. Qual vantagem da compra para o instituto, que justifique o gasto de R$ 8 milhões? — diz um servidor do INSS sob a condição do anonimato.

Alertado duas vezes para os problemas, o presidente do INSS resolveu agir. Não como os técnicos esperavam. Em vez de ampliar os estudos e interromper o processo de contratação da RSX, Francisco, segundo técnicos do INSS, teria retirado poderes dos órgãos encarregados de avalizar a contratação e determinado pessoalmente, com a ajuda de um servidor de sua confiança, a assinatura do contrato. O presidente do INSS não soube dizer de onde saiu a ideia de contratar a RSX e também não explicou por que ignorou os alertas para que não fechasse o negócio. A atuação da empresa se enquadra em uma zona nebulosa da legislação. O fato de oferecer capacidade técnica e financeira que, na prática, não tem, porque sequer conta com quadro de funcionários para desempenhar o serviço, poderia, na avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO, levar a questionamentos na Justiça.

O dono da RSX é o empresário Lawrence Barbosa, conhecido em Brasília por atuar no ramo gastronômico e na importação de vinhos. No site institucional, a empresa exibe fotos de um luxuoso edifício na área central da capital como sendo a sede da RSX. É o mesmo endereço que aparece no contrato com o INSS. No entanto, a sala está vazia há quase dois anos.

Questionado, Lawrence confirmou que a empresa atuaria na sala comercial vazia. Depois, ao saber que o a reportagem já havia estado no local, deu outro endereço onde funcionaria a “matriz”. No caso, o pequeno depósito de vinhos citado no começo da reportagem. O empresário não sabia, mas O GLOBO também já havia estado no local.

Em nota, a RSX nega que haja irregularidades no contrato. A empresa justifica que possui uma “estrutura é modular” que “pode ser ampliada ou reduzida, segundo a demanda de cada projeto”: “No caso do projeto desenvolvido junto ao INSS, a equipe prevista em contrato é formada por um gerente de conta e dois analistas, todos especialistas em segurança da informação. O objetivo do contrato é auxiliar no combate a fraudes que somam cerca de R$ 90 bilhões por ano”. A empresa alega também que Raul Maia, apontado como proprietário, “jamais foi sócio da RSX”. De acordo com a nota, ele é “gestor de negócios, um colaborador sem participação societária” .

A exemplo do INSS, a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) também suspendeu um contrato de R$ 3,6 milhões que tinha com a RSX Informática.