Correio braziliense, n. 20143, 16/07/2018. Mundo, p. 10

 

Espiões na cúpula

Silvio Queiroz

16/07/2018

 

 

EUA-RÚSSIA » Donald Trump e Vladimir Putin reúnem-se hoje na Finlândia sob o impacto do indiciamento de 12 agentes russos pela Justiça americana. Ingerência do Kremlin na eleição de 2016 ameaça dominar a agenda e obscurecer outras questões que dividem as duas potências

A ideia original, de ambos os lados, era apostar na surpreendente boa vontade recíproca entre os presidentes para resgatar uma relação bilateral que — Washington e Moscou concordam — anda no período mais difícil das três décadas desde o fim da Guerra Fria. Mas, como em momentos críticos da disputa geopolítica entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética, a espionagem rouba a cena e se impõe no centro das atenções às vésperas de uma reunião de cúpula. Donald Trump e Vladimir Putin se encontram hoje em Helsinque, na Finlândia, sob a sombra do indiciamento de 12 oficiais russos de inteligência no caso em que um procurador especial americano investiga a interferência do Kremlin para favorecer o atual presidente na eleição de 2016, quando conquistou a Casa Branca.

A notícia coincidiu com a tumultuada visita de Trump à Europa, onde teve desacordos públicos com os aliados da Otan (aliança militar ocidental) e impôs constrangimentos à premiê britânica, Theresa May, que o recebeu em Londres. Em meio a pedidos insistentes dos cardeais da oposição democrata para que suspendesse a cúpula com Putin, o presidente americano admitiu que poderá pedir ao colega que envie para julgamento nos EUA os indiciados. “Não havia pensado nisso, mas certamente perguntarei sobre o tema, mesmo que (a interferência russa) tenha ocorrido durante o governo de (Barack) Obama”, disse a uma emissora americana durante o fim de semana passado em um clube de golfe na Escócia.

O próprio conselheiro da Casa Branca para assuntos de Segurança Nacional, John Bolton, um republicano da linha-dura, veterano dos governos de Ronald Reagan e George Bush pai, considera mínimas as possibilidades de obter a extradição dos oficiais russos justamente de um governante como Putin, formado na KGB soviética. Mas confirmou que a cúpula de Helsinque será a melhor ocasião para que Trump questione o colega russo “olhando nos olhos” e reforçou a disposição para cobrar do Kremlin explicações sobre a invasão de servidores de e-mail e computadores do alto comando do Partido Democrata, durante a campanha presidencial. “Esse é um dos propósitos do encontro: ele (Trump) vai ouvir a resposta do presidente Putin e partiremos dela”, disse Bolton.

O indiciamento dos agentes russos no caso da espionagem eleitoral parece reforçar a posição dos que defendem uma atitude mais firme de Washington diante de uma potência que enxergam como empenhada em reconquistar a posição de poder ocupada durante a Guerra Fria. “Putin é um oficial de carreira da inteligência, profundamente hostil a mudanças democráticas, na Rússia ou na vizinhança”, argumentam os pesquisadores Richard Blackwill e Philip Gordon, em artigo a quatro mãos para a revista especializada Foreign Affairs. “Ele parece ter elegido como prioridade pessoal a tarefa de enfraquecer os EUA e se contrapor à sua influência onde estiver ao seu alcance.”

Mais firmeza

Blackwill e Gordon participaram dos esforços de diferentes governos para redesenhar as relações entre Washington e Moscou no pós-Guerra Fria — o primeiro, com os republicanos George Bush pai e filho, o segundo, com os democratas Bill Clinton e Barack Obama. Coincidem na crítica à atitude da Casa Branca diante das incursões da inteligência russa na campanha eleitoral de 2016 — tanto por parte de Obama quanto, agora, de Trump. “As sanções mínimas aplicadas até agora não mandaram uma mensagem suficientemente forte. Sem uma resposta mais vigorosa e abrangente (dos Estados Unidos), as ingerências do Kremlin vão continuar ou até piorar”, sustentam os estudiosos. “E outros adversários vão acabar concluindo que podem nos atacar com relativa impunidade.”

É também nos riscos para a credibilidade de Trump como governante e como comandante-em-chefe, responsável em última instância pela segurança nacional, que se concentra Stephen Sistanovich, pesquisador sênior do Conselho de Relações Exteriores (CFR, em inglês), instituto independente, mas que funciona como uma espécie de laboratório político do Departamento de Estado. “Em dois encontros anteriores e em inúmeros comunicados, Trump e Putin deixaram de lado esse assunto (a intervenção russa)”, diz Sestanovich. Por isso ele ressalta a promessa feita ao Congresso pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, de que o presidente iria a Helsinque decidido a questionar Putin duramente. “É improvável que eles cheguem a um acordo, o que poderia até ser politicamente arriscado para Trump.”

Com a crise em torno da espionagem tomando o centro das atenções, inclusive na cobertura da mídia, a esperada cúpula EUA-Rússia deverá ter menos espaço para temas como o envolvimento de ambas as potências na guerra civil da Síria, na qual apoiam lados opostos. Também haverá menos espaço para temas como a anexação, por Moscou, da península ucraniana da Crimeia, motivo de sanções econômicas e diplomáticas por parte de Washington.

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"A União Europeia é um inimigo"

16/07/2018

 

 

Na véspera do encontro com Vladimir Putin, em Helsinque, o presidente norte-americano, Donald Trump, listou a Rússia, a União Europeia (UE) e a China como “inimigos” dos Estados Unidos, por diversos motivos. “Acho que temos muitos inimigos. Acho que a União Europeia é um inimigo, com o que eles fazem conosco no comércio”, disse o republicano ao programa Face the Nation, da CBS.

“A Rússia é um inimigo em certos aspectos. A China é um inimigo economicamente, certamente são inimigos. Mas isso não significa que eles sejam ruins. Não significa nada. Significa que eles são competitivos. Eles querem fazer bem e nós queremos fazer bem”, acrescentou. Também ontem, a primeira-ministra britânica, Theresa May, revelou à emissora BBC que Trump lhe sugeriu processar a União Europeia.

Na entrevista à CBS, o líder norte-americano repetiu afirmações anteriores de que a UE “realmente tirou vantagem de nós no comércio”. Ele se queixou de que “é muito ruim para a Alemanha” que o país depende do gás da Rússia, pelo qual paga  “bilhões” a Moscou. “A União Europeia é muito difícil. Em um senso de comércio, eles têm realmente tirado vantagem de nós e muitos daqueles países estão na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e não querem pagar suas contas”, emendou, referindo-se aos compromissos no setor de defesa.

A revelação de May sobre o conselho de Trump em relação à União Europeia foi feita durante o programa dominical The Andrew Marr Show, cerca de 48 horas depois do encontro com o magnata, em Londres. “Ele me disse que deveria processar a União Europeia ante a Justiça. Processar a UE. Não continuar negociando e, sim, processá-la ante a Justiça”, comentou a premiê. “Mas, na realidade, não, nós vamos negociar”, acrescentou, ao responder sobre uma declaração de Trump que intrigou a imprensa.

“Brutal”

Durante a entrevista coletiva posterior à reunião entre os dirigentes, na última sexta-feira, Trump disse ter sugerido a May um método para levar o Brexit — o divórcio do Reino Unido em relação ao bloco — adiante. No entanto, ressaltou que a primeira-ministra “talvez tenha achado algo muito brutal”. “Talvez um dia o faça. Se não conseguirem um acordo de saída, pode fazer o que eu sugeri, mas não é uma coisa fácil”, acrescentou Trump, sem esclarecer em que consistia sua sugestão.