Correio braziliense, n. 20141, 14/07/2018. Opinião, p. 9

 

Saúde pública no século 21

Dioclécio Campos Júnior

14/07/2018

 

 

Na maioria dos países, a promoção efetiva da saúde tem ficado fora das ações governamentais. O foco das iniciativas do Estado tem sido a ação dos profissionais especializados em diagnóstico e tratamento das doenças, assim como as estruturas hospitalares devidamente equipadas com os recursos tecnológicos. Quase nada é investido na prevenção de enfermidades. A maior parte dos investimentos orçamentários se restringe ao diagnóstico e tratamento das doenças, que é política com baixos índices de retorno econômico para o país.

Os alertas científicos têm sido claros quanto à prioridade das ações preventivas, sem desconsiderar a terapêutica como prática complementar. Todavia, indevidos conceitos prejudicam o teor das políticas públicas. Saúde não significa cura de doença, mas o bem-estar físico, mental e social do indivíduo. Para que isso ocorra, o papel primordial das medidas governamentais deve ser o de evitar que as pessoas adoeçam. Não apenas por meio das vacinas disponíveis contra algumas doenças infecciosas, mas, sobretudo, garantindo condições salubres ao meio ambiente em que vivem as populações.

Com efeito, nos tempos atuais, segundo informações da Organização Mundial da Saúde (OMS), a maior taxa de mortalidade no planeta não é mais atribuível a doenças transmissíveis, mas àquelas produzidas por degradações ambientais que poluem a atmosfera dos espaços urbanos. De fato, as principais causas dos desafios para a saúde pública no novo século são os agravos ecológicos tidos como efeitos adversos da revolução industrial. São as consequências maléficas do imensurável aumento da frota de veículos automotores, que prospera em todo o planeta, de maneira ilimitada e sem controle por meio de indicadores destinados a conter tamanho impacto.

Além dos acidentes de trânsito, a OMS destaca a poluição ambiental atmosférica como responsável pela deterioração dos índices da saúde pública mundial. Estudos científicos comprovam que tais fatores estão na gênese de enfermidades potencialmente graves como doenças coronarianas, câncer do pulmão e distúrbios auditivos. É uma pandemia dos novos tempos, que se expande como a da peste negra do século 14, que matou mais de 25 milhões de habitantes da Europa e Ásia.

Pesquisas realizadas na cidade de Londres evidenciam a relação de causa e efeito entre as substâncias poluentes da fumaça eliminada pelos carros, entre elas o monóxido de carbono e o dióxido de nitrogênio, e os índices das coronariopatias, hipertensão arterial e câncer pulmonar. Com a gigantesca quantidade de automóveis, ônibus e caminhões nas vias públicas, as pessoas estão constantemente expostas aos efeitos tóxicos dessas substâncias. São os fumantes passivos da atualidade. Além disso, foi também comprovado que os fetos das gestantes expostas a tais agravos ambientais padecem do mesmo tipo de intoxicação. Um grande número deles vem ao mundo como recém-nascidos de baixo peso, condição que os predispõe a distúrbios coronarianos e hipertensivos nas etapas futuras da vida. A OMS enfatiza também a poluição sonora por meio da qual os veículos afetam a saúde das pessoas, gerando perda da audição, aborrecimentos depressivos, infarto, baixa capacidade de concentração mental e reduzido desempenho escolar das crianças.

A responsabilidade com a reversão desses efeitos nocivos sobre a saúde pública é dos governantes, não dos profissionais de saúde. Sem falar do saneamento básico, que não pode ser esquecido. Os países necessitam substituir, o mais rapidamente possível, os veículos automotores poluentes e prover transportes coletivos de qualidade, providências que dependem do compromisso das autoridades encarregadas do bem-estar físico, mental e social da população.

Evidências científicas confirmam a lógica a ser defendida perante os governos a fim de que se convençam da premência das mudanças em benefício do objetivo promocional da saúde da população. Se não erradicarem do horizonte sanitário a poluição do espaço urbano, prevalecerá o atraso conceitual que é incompatível com o bem-estar físico, mental e social ao indivíduo. Caso não assumam o que há de ser feito para uma vida saudável no contexto da sociedade do século 21, devem, pelo menos, ser coerentes e corrigir as expressões usadas em seus países. Assim, no Brasil, se na área da saúde não houver prioridade para as ações preventivas, o Ministério da Saúde deverá ser denominado Ministério da Doença, e a sigla SUS será SUD, isto é, Sistema Único da Doença.

 

Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria e presidente do Global Pediatric Education Consortium (GPEC). E-mail: dicamposjr@gmail.com