O globo, n. 30972, 25/05/2018. Artigos, p. 15

 

Sem amortecedores

José Oaulo Kupfer

25/05/2018

 

 

São assustadoras a rapidez e a extensão da crise provocada pela paralisação no setor de transporte rodoviário. Em apenas 72 horas, o bloqueio do fornecimento de combustível pelos caminhoneiros, com apoio explícito das associações de transportadores, resultou em colapso parcial dos serviços de transportes urbanos, das operações em aeroportos e do fornecimento de alimentos no varejo.

Os efeitos do movimento em reação à política de reajustes de preços dos combustíveis adotada pela Petrobras também resultaram em desestabilização da diretoria da empresa e jogaram as cotações de suas ações nos mercados num redemoinho. Não fosse o suficiente, ainda causaram tumulto no governo, bateção de cabeça no Congresso e confusão nos postos de gasolina, com filas para encher o tanque e elevações absurdas de preços, diante do temor de desabastecimento.

Buscar culpados no pico da crise aguda é a atitude menos produtiva. É possível acusar o governo de não ter se preparado para esse tipo de situação, vendo-se agora obrigado a agir no atropelo e no improviso. Pode-se também criticar a política de preços da Petrobras, que, no limite, igualou o ultrassensível mercado de petróleo/energia ao, por exemplo, segmento de padarias, que também é afetado pelas cotações internacionais do trigo, mas está longe de configurar, diferentemente daquele em que a Petrobras opera, um oligopólio ou mesmo monopólio natural. Mas nada disso colabora com a urgência da busca de uma solução, mesmo que emergencial, para o impasse.

O momento atual, combinando alta nas cotações internacionais de petróleo e valorização do dólar, configurou uma tempestade perfeita para a política de preços da Petrobras. Não foi previsto nada capaz de compensar os impactos dessa combinação tão explosiva quanto passível de ocorrer. Está em marcha um retorno a uma certa normalidade instável no ambiente global, com o preço do barril de óleo saindo de níveis muito baixos para uma posição intermediária, e o dólar, depois do longo período de afrouxamento monetário, em resposta à grande crise de 2008, voltando de mínimos históricos para patamares mais condizentes com seu peso econômico. Mais cedo ou mais tarde, era inevitável.

Tudo fica ainda mais complicado e difícil de administrar quando, ao petróleo mais caro e ao dólar mais valorizado, se adiciona, no caldeirão do problema, a concentração da logística no modal rodoviário, o dramático desequilíbrio fiscal e a crise de crescimento em que a economia doméstica está enredada. Numa cadeia de distribuição em que 65% do volume transportado são feitos por caminhões, a briga por margens, atiçada pela fraqueza da demanda, conduz a um colapso se o preço do frete sobe frequente e rapidamente, sem possibilidade de repasse no mesmo nível e ritmo.

O lado fiscal não é menos problemático. No caso do óleo diesel, a margem da Petrobras na formação do preço nem chega a 15%. O grosso é formado pela parte de transportadores, distribuidores e, sobretudo, por tributos federais e estaduais, que respondem por 40% do preço. Para piorar, em meio à escassez de receitas para fazer frente a seus imensos déficits, União e estados têm forçado, crescentemente, novos aumentos de impostos. De meados do ano passado ao início de 2018, enquanto a margem da Petrobras caía 17%, a parcela dos impostos federais elevou-se em 85% e a dos estaduais, em 15%.

Cortar tributos para reduzir os preços cobrados nas bombas, a solução emergencial aventada, talvez seja o caminho viável nas atuais circunstâncias, mas tem custos econômicos e políticos fáceis de identificar. Além da incoerência ambiental e fiscal que embute, enfrenta resistências nos estados e deixa a equipe econômica do governo, responsável e fiadora do ajuste das contas públicas, falando sozinha.

Na verdade, se há um culpado nessa história muitíssima complicada, é a ideia de que a aplicação de ideologias econômicas, com suas derivadas nas políticas públicas, tem a capacidade de resolver de maneira ótima conflitos em sociedades complexas e de alguma forma expostas, como coadjuvantes, aos choques internacionais. Imaginar que uma política rígida de preços — voltada para o objetivo único de preservar margens de comercialização, geração de caixa e lucro, esquecendo-se, portanto, de prever amortecedores para situações e momentos extraordinários — poderia ser praticada indefinidamente sem restrições, em setor tão estratégico da economia, só revela alta dose de insensibilidade política.

*José Paulo Kupfer é jornalista