O globo, n. 30975, 28/05/2018. País, p. 12

 

Aumentam registros de abuso sexual no transporte público

Carina Bacelar

28/05/2018

 

 

Ano passado, foram 156 ocorrências em ônibus, vans, metrô e trens. Em 2014, 30 casos chegaram à polícia

No dia 23 de março, a estudante X., de 23 anos, voltava cansada para casa de metrô, depois de mais um dia de aulas na faculdade, em São Cristóvão. Entrou no vagão por volta de 23h e o encontrou um pouco mais lotado que o normal para o horário. Sentiu-se incomodada com o olhar fixo de um homem a seu lado. Quando decidiu pedir que se afastasse, reparou que ele estava com a calça aberta e havia ejaculado em sua perna e pé.

— Na hora, fiquei paralisada, não acreditei. Depois comecei a gritar, dei um chute nele, e ele caiu — lembra a jovem, que até hoje não conseguiu voltar a andar de metrô sozinha.

Abusos sexuais, como o sofrido por X., são relatados constantemente por mulheres que usam transporte público no Rio. Ainda que muitas se sintam desencorajadas a denunciá-los, as estatísticas do Instituto de Segurança Pública (ISP) registram aumento de casos. O ano passado terminou com 156 registros de violência sexual em transportes coletivos e alternativos. Em 2014, foram 30 casos.

De 2014 a 2017, 399 episódios de violência sexual nesses modais chegaram à polícia, um a cada quatro dias, em média. Essas estatísticas incluem casos de estupro (180), tentativa de estupro (28), importunação ofensiva ao pudor (163) e ato obsceno (28). Se incluídos também os terminais de embarque, houve 31 casos de violência sexual em 2016 e 29 em 2017 (não constam estatísticas de anos anteriores). Para especialistas, entretanto, esses números estão longe de refletir a realidade, já que a maioria dos casos sequer chega a ser denunciada.

 

ESTUPRO: DEFINIÇÃO MUDOU

Foi o que quase aconteceu com X., que, depois da agressão, precisou enfrentar um verdadeiro calvário em duas delegacias. Primeiro, amparada por funcionários da concessionária Metrô Rio, ela foi levada para a Cidade da Polícia para registrar o crime, já que lá funciona uma central de flagrantes. O agressor, Idenilson Carvalho da Silva, foi levado em um carro da PM até o local. De lá, a vítima foi encaminhada para a 25ª DP (Engenho Novo), onde esperou por quatro horas madrugada adentro, até 4h, para fazer o registro, em vão. Sem o agressor, que foi levado para o Hospital Municipal Salgado Filho para fazer o exame de corpo de delito, sequer ter chegado à unidade, desistiu da espera e foi para casa.

— Eu fiquei chorando lá por muito tempo, largada. Eu amamento ainda, minha filha (que tem 1 ano) não podia ficar sem mim. Queria ficar, mas não consegui — conta.

No dia seguinte, procurada pelo delegado da unidade, ouviu que não houve, na opinião dele, “violência” nem “grave ameaça”. O caso foi registrado como importunação ofensiva ao pudor, uma infração penal que pode resultar em multa de mil reais.

Segundo a professora de Direito da FGV Maíra Zapater, casos de violência sexual em transportes costumam ser enquadrados como importunação ofensiva ao pudor ou estupro. Mas essas classificações variam conforme o entendimento das autoridades policiais e jurídicas. Ela explica, porém, que, desde 2009, o estupro não é mais definido como “conjunção carnal”, conforme estabelecido nos anos 40. Com isso, todo tipo de ato sexual praticado com violência ou grave ameaça passou a ser estupro, com pena de seis a dez anos de prisão.

Débora Rodrigues, titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher do Centro, diz que tem classificado os crimes sexuais ocorridos nos transportes com base no artigo 215 do Código Penal, que tipifica a “violação sexual mediante fraude”:

— Esse crime ocorre porque a vítima se encontra no meio de transporte, e o autor, de forma ardilosa, usa do artifício de o veículo estar cheio para abusar sexualmente.

 

CRIME POUCO DENUNCIADO

Mesmo com as delegacias especializadas, poucas vítimas procuram as autoridades, destaca Maíra Zapater.

— Os crimes sexuais estão entre os mais subnotificados. Muitas vezes as mulheres não se sentem seguras. E não têm noção de que o agressor esta violando a lei — diz ela, ressaltando que o Tribunal de Justiça de São Paulo tem sentenciado as concessionárias a indenizar as vítimas.

As concessionárias afirmam que treinam suas equipes para lidar com esse problema. A Metrô Rio disse que “diariamente, 450 agentes e 160 auxiliares de plataforma realizam rondas nas estações e nos trens para coibir qualquer ocorrência deste tipo”. A CCR Barcas afirmou que as embarcações “contam com a presença de tripulação treinada para prestar atendimento em caso de necessidade”, além de câmeras que podem flagrar eventuais abusos. A SuperVia informou que “veicula avisos sonoros para reforçar a importância de que o carro feminino seja respeitado”. Já as empresas de ônibus participaram, em fevereiro, de uma formação online sobre como evitar o assédio nos transportes.