Correio braziliense, n. 20137, 10/07/2018. Política, p. 2

 

PGR entra em campo

Rodolfo Costa, Renato Souza e Murilo Fagundes

10/07/2018

 

 

PODER » Na tentativa de levar o debate sobre a possibilidade de liberdade de Lula às cortes superiores, a Procuradoria-Geral da República pede que o Superior Tribunal de Justiça julgue os próximos habeas corpus apresentados pela defesa do petista

Temendo novos embates entre desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgue um habeas corpus apresentado pela defesa dele. A estratégia é levar o debate sobre a possibilidade de liberdade do petista para os tribunais superiores, a fim de impedir qualquer novo ato da segunda instância que possa causar insegurança jurídica ao país. Se acatado, o pedido pode nortear decisões sobre casos semelhantes no país.

A manifestação referente ao caso do ex-presidente Lula foi enviada ao STJ no fim da noite de domingo pelo procurador-geral da República em exercício no plantão, o vice-procurador-geral Eleitoral, Humberto Jacques de Medeiros, e divulgada ontem. No documento, Humberto destaca que as decisões contraditórias no TRF-4 colocaram a Polícia Federal em uma situação complicada. “A autoridade policial se encontra no meio de ordens judiciais contraditórias, oriundas da mesma Corte Regional de Justiça, mas da competência do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se de conflito interno do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em tema da competência do Superior Tribunal de Justiça”, diz um trecho da reclamação.

Em nota, o MPF informou que as decisões no TRF-4 colocam em risco a segurança jurídica. “Toda a movimentação processual envolvendo os desdobramentos do HC apresentado em favor do presidente Lula foram acompanhados pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que manifestou preocupação em relação a medidas que possam colocar em risco a segurança jurídica e a legislação processual vigente, que define com clareza a competência judicial”, destacou.

O procurador pediu que o STJ analise o habeas corpus para evitar que “ordens e contraordens” retirem a autoridade do tribunal sob o processo que já foi julgado em segunda instância. A solicitação do Ministério Público Federal (MPF) ocorre após uma série de reviravoltas no TRF-4. Em uma ação que surpreendeu até mesmo especialistas no Poder Judiciário, o desembargador Rogério Favreto determinou a soltura de Lula, alegando que a pré-candidatura dele à presidência é um fato novo no processo e que ele deve ter os direitos políticos mantidos.

Uma hora depois, a decisão dele foi suspensa pelo relator do processo, João Pedro Gebran Neto e, no fim da noite de domingo, pelo presidente da Corte, Thompson Flores. Em decisão tomada na tarde de ontem, Gebran Neto voltou a afirmar que a iniciativa de Favreto não tem validade, pois não traz novos fundamentos. “Não há o fato a ensejar o reexame da determinação de cumprimento da pena… E, mais grave, o que há é apenas sua auto-proclamação de pré-candidato, sem que este episódio possa ser considerado fato relevante para o julgamento do tema, tampouco como novidade no mundo fático”, diz um trecho do documento.

O professor Samuel Santos, especialista em direito penal e eleitoral, destaca que existe uma série de controvérsias em todas as decisões que foram tomadas sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula. “O processo já foi analisado pelo TRF-4. Ou seja, já saiu daquela instância. Então, naquele momento, o desembargador poderia ser visto como incompetente para julgar o caso. Mas também é estranha a ação do juiz Sérgio Moro, que não estava de plantão, e interferiu no assunto, solicitando à autoridade policial que não cumprisse uma decisão judicial”, afirma. O especialista afirma, no entanto, que a ida da discussão para o STJ deve encerrar os debates jurídicos. “Levar para a instância superior é a decisão mais sóbria e segura durante este impasse.”

O advogado eleitoral e criminalista Marcellus Ferreira Pinto, do escritório Nelson Wilians e Advogados Associados, tem uma opinião divergente. Para ele, o pedido de habeas corpus deveria ser arquivado ainda no TRF-4. O despacho de Favreto coloca o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Criminal de Curitiba, como coautor do processo, o que configura uma ilegitimidade passiva. “O juiz Moro não pode ser apontado como coautor, pois não foi ele que mandou prender o ex-presidente. Foi uma ordem emanada pelo tribunal de uma turma recursal do TRF-4. Então, há um vício formal que, na minha opinião, já bastaria para que o processo não fosse para frente”, ponderou.

Favreto é o plantonista do TRF-4 até o dia 17 deste mês. Lula segue preso na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Além de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), no TRF-4, o ex-presidente também tem um recurso especial tramitando no STJ, junto a um habeas corpus, que pedem que ele responda em liberdade até que se esgotem todos os recursos.

Reações

Em poucas horas, uma guerra de decisões judiciais se estabeleceu entre os próprios desembargadores do TRF-4 e envolveu o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba. O episódio gerou diversas denúncias ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por regular e acompanhar o trabalho do Poder Judiciário.

Favreto era alvo de pelo menos seis reclamações no CNJ até o fechamento desta reportagem. Integrantes do Ministério Público, políticos e advogados apontam possíveis infrações disciplinares do magistrado. Um dos pedidos de providência é assinado por mais de 100 promotores e procuradores. O grupo alega que a soltura do ex-presidente Lula foi arbitrária. “A quebra da unidade do direito, sem a adequada fundamentação, redunda em ativismo judicial pernicioso e arbitrário, principalmente quando desembargadores e/ou ministros vencidos ou em plantão, não aplicam as decisões firmadas por órgão colegiado do tribunal”, afirmam os membros do MP no pedido. Sérgio Moro é alvo de duas representações, por suposto descumprimento de ordem judicial e interferência indevida.

Cármen Lúcia

O presidente Michel Temer tem pelo menos três viagens ao exterior marcadas para este mês. Com a saída dele do país, quem assume a presidência da República é a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela pode acumular as duas funções. Mas, caso decida se afastar do comando da Corte, quem fica no lugar dela é o ministro Dias Toffoli, que é contra a prisão em segunda instância.

Advogados de Lula avaliam a possibilidade de que Toffoli aceite um pedido de liberdade relacionado ao petista. A primeira viagem de Temer deve ocorrer para Cabo Verde, no dia 17 deste mês. De acordo com fontes ouvidas pelo Correio, Cármen Lúcia ainda não decidiu se vai ocupar os dois cargos.

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A politização da Justiça

Luiz Carlos Azedo

10/07/2018

 

 

As fortes ligações dos membros das cortes superiores e tribunais de justiça com políticos não são nenhuma novidade, o fato novo é a punição dos políticos pelos juízes e tribunais, entre os quais o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado a 12 anos e um mês de prisão em regime fechado. É o primeiro caso de um presidente da República levado à prisão no Brasil. Isso não aconteceu na Revolução de 1930 nem no golpe militar de 1964. Os ex-presidentes Washington Luiz e João Goulart, depostos, foram para o exílio. Poderiam ter sido presos, se Getúlio Vargas e Castelo Branco quisessem fazê-lo.

Após a redemocratização, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que renunciou ao sofrer um processo de impeachment, não foi preso. Respondeu a processo em liberdade e acabou absolvido, sem passar pelas instâncias de primeiro e segundo grau. A ex-presidente Dilma Rousseff, deposta no impeachment, nem os direitos políticos perdeu. Todos os ex-presidentes vivos têm alguma influência nos tribunais. Não tem fundamento constitucional a narrativa do PT de que Lula é um preso político, de que sua prisão é uma perseguição dos “jacobinos de toga”. Lula está preso porque recebeu vantagens indevidas no exercício do cargo e isso é crime comum. Foi condenado em duas instâncias e estará fora da disputa eleitoral por causa da Lei da Ficha Limpa. Os fatos jurídico-políticos são esses, o resto é discurso eleitoral e muita luta pelo poder.

É nesse contexto que os fatos de domingo passado, envolvendo o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que mandou soltar Lula, e os juízes naturais do caso do tríplex de Guarujá, o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal, de Curitiba, responsável pela execução da pena, o desembargador João Pedro Gebran Neto, relator do caso, e o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, desembargador Trompson Flores, que mantiveram a prisão, precisam ser analisados. A luta política chegou à Lava-Jato em todas as instâncias.

Num país de dimensões continentais, que somente veio a completar sua revolução burguesa na década de 1930, mesmo considerando-se o importante papel do Exército brasileiro e da diplomacia na preservação da integridade territorial e consolidação de nossas fronteiras, seria inimaginável a construção do Estado nacional sem a existência de uma Justiça capaz de se fazer presente em todas as cidades. No período colonial, a Justiça local era exercida por cidadãos designados pelas Câmaras Municipais eleitas; com a chegada da Corte portuguesa, essa estrutura não mudou muito; depois da Independência, o sistema passou a ser híbrido, com a nomeação dos juízes pelo imperador e a criação de juris formados por eleitores, que anualmente eram alistados para julgarem devassas e querelas em processo público e oral. Impossível não haver politização.

Caverna

A centralização e profissionalização da magistratura só veio em 1850, quando o impedor D. Pedro II, por decreto, estabeleceu que os juízes seriam nomeados por ele, entre bacharéis, após servirem como juiz municipal, de órfãos, ou promotor público. Os habilitados deveriam ser matriculados com base nas informações prestadas pelos presidentes de Província e pela documentação apresentada pelo requerente, o que garantiu o controle do Judiciário pelo Partido Conservador. Após a proclamação da República, com a Constituição de 1991, a grande mudança foi a realização de concursos: “A nomeação de juízes de direito será precedida de noviciado e concurso, e a dos substitutos, de noviciado”.

Mesmo assim, somente no final do regime militar, em 14 de março de 1979, foi editada a Lei Complementar nº 35, instituindo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Entre outras disposições, essa lei criou o Conselho Nacional da Magistratura, extinto em 1998 por simples despacho de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Renasceu das cinzas, porém, com a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004., recebendo a denominação de Conselho Nacional de Justiça. Antes mesmo de sua publicação, a emenda foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3367), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, mas o Supremo decidiu por maioria julgar improcedente a ação.

Há uma tensão permanente entre os magistrados de carreira e os desembargadores e ministros do chamado quinto constitucional, exacerbada pelo fato de que a composição do Judiciário, mesmo com os concursos, manteve características de casta privilegiada e corporativista. Para o cidadão comum, a Justiça gasta muito, produz pouco e fala uma língua que não se entende. Para os poderosos, os ritos do processo são mais importantes do que os fatos; com os miseráveis, ocorre exatamente o contrário. Com a Operação Lava-Jato, esse modus operandi estolou. O caso Lula pôs a crise ética no colo da Justiça brasileira, que está como homem das cavernas de Platão: não sabe se permanece à luz do dia ou volta para a escuridão. Quem vai decidir é o Supremo Tribunal Federal (STF).