O globo, n. 30973, 26/05/2018. Economia, p. 20

 

PF vai chamar 20 empresários para depor, diz Jungmann

Jailton de Carvalho e Eliane de Oliveira

26/05/2018

 

 

Inquérito é para apurar se houve participação de patrões em bloqueios

O governo vai investigar irregularidades durante a paralisação dos caminhoneiros, que provocou grave crise de desabastecimento em todo o país. Ontem, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, determinou a abertura de inquérito, pela Polícia Federal, para apurar se houve prática ilegal de locaute — quando as empresas impedem os empregados de trabalhar para atender a interesses próprios. Segundo Jungmann, uma das preocupações é que as empresas responsáveis pelas paralisações tenham mantido ou ampliado suas margens de lucro. O ministro disse que cerca de 20 empresários serão chamados para depor.

Caso as investigações comprovem o locaute, há penas de reclusão e multas. Pode ser comprovado o atentado contra a segurança do serviço de utilidade pública, que prevê de um a cinco anos de prisão, e o atentado contra a liberdade do trabalho, que pode dar até um ano de prisão.

— Enquanto a greve é um direito constitucional do trabalhador, para buscar melhores condições, o locaute é uma ilegalidade — disse Jungmann.

 

CADE TAMBÉM VAI APURAR

Ao mesmo tempo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) informou que vai apurar se empresas e pessoas responsáveis pelo movimento agiram para prejudicar a concorrência. Em nota, o Cade destaca que vai apurar se houve infrações contra a ordem econômica. Isso inclui atos para “limitar, falsear ou, de qualquer forma, prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”, além de “exercer de forma abusiva posição dominante”. Também são apontadas como práticas ilegais “destruir, inutilizar ou açambarcar matériasprimas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuílos ou transportá-los”.

Se condenadas pelo Cade, as empresas podem ser multadas entre 1% e 20% do faturamento do ano anterior à abertura do processo. Pessoas físicas estão sujeitas a sanção de R$ 50 mil a R$ 2 bilhões.

A lei prevê ainda proibição de obter empréstimos em bancos oficiais e participar de licitação; a recomendação para que não se parcelem tributos federais, se concedam incentivos fiscais ou subsídios públicos; a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos ou cessação parcial de atividade; e a proibição de exercer o comércio.

Embora as principais entidades patronais que representam as transportadoras neguem o apoio de companhias do setor à greve, alguns empresários do ramo de transportes de carga usaram as redes sociais para alardear que estavam alinhados e incentivar o movimento.

Vittorio Medioli, prefeito de Betim (MG) e dono da Sada Transportes e Armazenagem, uma das maiores transportadoras dos veículos produzidos na fábrica da Fiat na cidade, divulgou em sua página numa rede social um vídeo no qual parabeniza os caminhoneiros pelo movimento. “Continuem, estamos juntos”, diz o empresário e prefeito que é filiado ao Podemos.

Outro empresário do ramo, Emílio Dalçoquio, de Itajaí (SC), foi filmado sobre um carro de som de onde dizia que, se houvesse algum veículo de sua empresa, a Transportes Dalçoquio, circulando pela cidade, “podem parar os caminhões e pôr fogo”.

No vídeo, Medioli diz prestar “solidariedade aos movimentos que pararam o Brasil”. E afirma que a Petrobras está “nas mãos de pessoas incompetentes”:

— Substituíram os corruptos pelos incompetentes. E dá isso o que está ocorrendo aí.

Os próprios caminhoneiros à frente das manifestações reconheciam o suporte de empresários do setor de transporte. Num dos bloqueios da rodovia Regis Bittencourt (BR-116), na região metropolitana de São Paulo, ao menos três empresas estão ajudando informalmente os caminhoneiros à frente da interdição.

 

CAMINHONEIROS SE REVEZAM

Segundo os manifestantes, essas empresas se organizam para levar quentinhas, lanches, água e café nos pontos de parada.

— Normalmente o pessoal vem sem estar caracterizado como sendo da empresa. Sem uniforme nem nada. Os patrões não estão nos obrigando a furar bloqueio nem seguir viagem — diz o caminhoneiro Rodrigo Marques.

Uma empresa está revezando os motoristas que estão no bloqueio — o caminhão fica parado, mas o caminhoneiro muda. Os responsáveis das empresas não foram localizados.

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Nem greve nem locaute, dizem especialistas

Glauce Cavalcanti

26/05/2018

 

 

Há pleitos, porém, que são patronais, como veto à reoneração da folha

Do ponto de vista jurídico trabalhista, existe uma lacuna para tratar o movimento dos caminhoneiros que há seis dias bloqueia estradas e causou desabastecimento em todo o país, avaliam especialistas. Do lado dos trabalhadores, ele não configura uma greve como prevista em lei. Tampouco seria um locaute (do inglês lockout) — prática proibida no país —, quando os empregadores paralisam atividades para frear pleitos coletivos dos funcionários. A ação, acreditam advogados, pode ter sido articulada com o apoio de grandes empresas e entidades do setor, considerando a falta de reação das companhias diretamente afetadas. O formato de mobilização, contudo, dificulta apontar e punir responsáveis.

— Em âmbito legal, trata-se do direito de protesto das partes, caminhoneiros e transportadores. Não existe reivindicação trabalhista latente. É movimento sem liderança central, que torna a negociação difícil. Por trás, é bem articulado, dificultando apontar responsáveis e aplicar penalidades, o que não impede que isso seja feito — explica Luiz Antonio dos Santos Jr., sócio da área trabalhista do Veirano Advogados.

O que a paralisação mostrou até aqui, avaliam os advogados, é que caminhoneiros, transportadores e mesmo algumas indústrias estão alinhados, o que difere de um locaute. É que o ganho que vier do movimento dos trabalhadores pode beneficiar toda a cadeia logística.

— O locaute ocorre quando uma empresa paralisa propositalmente as atividades para frustrar pleitos dos trabalhadores numa negociação coletiva. Não é o que ocorre. Uma greve pressupõe empregados reivindicando algum direito a seus empregadores. Também não é o que vemos. Não há ilícito do ponto de vista trabalhista. — diz Luiz Marcelo Góis, sócio da área Trabalhista do BMA.

Segundo o advogado Paulo Sérgio João, é um movimento atípico porque não há relação contratual entre as partes.:

— É de fundo econômico e social, político.

Todos reconhecem, porém, que, na pauta de reivindicações do acordo fechado na noite de anteontem entre o governo e entidades ligadas ao movimento dos caminhoneiros, há ao menos dois pontos que sinalizam interesses patronais. Uma delas é a que pede a não reoneração da folha de pagamento do setor de transporte de cargas. A outra é a que quer que ações judiciais da União contra entidades relacionadas ao movimento (que não identifica seus líderes) de caminhoneiros sejam extintas.

 

’EXISTE ARTICULAÇÃO POLÍTICA’

Tem bases política e econômica a ponte que parece unir tralhadores e transportadoras, explica Maurício Lima, sócio-diretor do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). Ele diz que fica mais fácil negociar com o governo fragilizado:

— Quando a recessão começou, o setor vinha de forte expansão, endividado pela compra de veículos. A partir do fim de 2014, o custo subiu, a demanda caiu. E não foi possível repassar isso para o preço. Com a retomada da demanda desde maio de 2017, os caminhoneiros tentaram fazer o repasse, mas a indústria não estava preparada para absorvê-lo. Com a ameaça do aumento do custo pelo reajuste do diesel, querem a regulação do preço, além da redução tributária.

O setor de transporte rodoviário no país, diz Lima, soma dois milhões de caminhoneiros e 158 mil empresas, sendo apenas 50 delas de grande porte:

— A maioria dos autônomos ou pequenos empresários presta serviço para os maiores. Em geral, as grandes transportadoras operam com mais da metade da frota composta por autônomos.

A decisão do presidente Michel Temer de acionar as Forças Armadas para liberar os bloqueios nas rodovias trouxe de volta à cena a histórica greve dos caminhoneiros que ocorreu no Chile, em 1972, numa tentativa de derrubar o governo de esquerda de Salvador Allende:

— Agora é diferente. No Chile, era um movimento político para derrubar o governo Allende, comandado pelos partidos de direita, com intervenção americana no financiamento aos caminhoneiros — explica Alberto Aggio, professor titular de História da Unesp e especialista em Chile e América Latina. — Aqui, fica claro que existe uma articulação política. Mas o foco não está em derrubar o governo. Ele (Temer) mantém a legitimidade presidencial, ainda que tenha perdido o controle do Congresso.