O globo, n. 30974, 27/05/2018. Rio, p. 11

 

Crimes de advogados

Elenilce Bottari

Vera Araújo

27/05/2018

 

 

Defensores de grandes traficantes estão condenados ou denunciados por ligações com quadrilhas.

Um terreno de 17 mil metros quadrados pertinho do mar, em uma das praias mais famosas do país—ada Pipa, no Rio Grande do Norte —, está no centro de uma inusitada disputa entre Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho BeiraMar, e a advogada Cecília Mara Machado, exdefensora do traficante. Vendido por R$ 1,2 milhão para a construção de um luxuoso empreendimento imobiliário, o imóvel é considerado pelo Ministério Público Federal (MPF) uma evidência de que Cecília atuou como laranja da organização criminosa de Beira-Mar.

O traficante, a advogada e o marido dela são denunciados por lavagem de dinheiro e organização criminosa em processo que tramita em Rondônia. A denúncia foi baseada em documentos apreendidos pela Polícia Federal durante a Operação Epístola. Entre as provas, há um bilhete escrito amã opor Beira-Mar, no qual ele reclamas er o dono do terreno, avalia o imóvel em R$ 1,5 milhão e determina que a advogada devolva tudo que é dele. Segundo a denúncia, o bandido repassou o imóvel a Cecília para esconder que era o verdadeiro dono. A advogada nega, e diz que o terreno, revendido em 2016, já pertencia ao marido quando começou a advogar para Beira-Mar.

A curiosa disputa é apenas um dos casos em que advogados foram condenados, denunciados ou estão respondendo a processos por envolvimento com os maiores criminosos do país, para os quais trabalh amou játra balharam. Lavagem ded in heiroéo crime mais comum atribuído a eles. Além de Cecília, três defensores de Beira-Mar são acusados de colaborar ativamente para que o mais perigoso condenado do país derrubasse as rígidas barreiras do presídio federal de segurança máxima de Porto Velho e expandisse seus negócios para Suriname, Bolívia e Paraguai durante os cinco anos em que passou naquela unidade. Ele hoje está em Mossoró.

Em comum, todos esses defensores continuam em situação regular junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autorizados a trabalhar normalmente, como se não fossem investigados por crimes.

ADVOGADO ENVOLVIDO EM COMPRA DE ARMAS

O criminalista Alexandre Raggio Gritta Hage, chamado de Ítalo pela quadrilha de Beira-Mar, responde a processo sob a acusação de ter atuado diretamente na compra de armas e drogas no Paraguai para o traficante. A participação de Hage foi descoberta após a confrontação dos dados das agendas dos aparelhos telefônicos do filho de Beira-Mar, Luan Medeiros da Costa. Na Operação Epístola, a PF obteve provas de que Hage, além de comprar armas, cuidava de entregas de dinheiro para criminosos. Funcionaria como uma espécie de tesoureiro do bando. No processo, o criminalista é tratado como uma espécie de relações-públicas do grupo no tráfico internacional de drogas.

“Embora seja advogado, há, nos autos, provas suficientes de que realiza atividades que transcendem o exercício da advocacia”, diz a denúncia do Ministério Público.

Curiosamente, Hage é defendido na ação por Wellington Corrêa da Costa Júnior, um dos mais antigos defensores de Beira-Mar, que também já figurou no rol de culpados. Ele e o advogado Lydio da Hora, seu sócio em um escritório de advocacia no Rio, foram presos em flagrante em novembro de 2004, quando pagavam R$ 100 mil em espécie a policiais federais para impedir a prisão de Marcos José Monteiro Carneiro, então tesoureiro da quadrilha.

Condenado inicialmente a dez anos de prisão, Wellington conseguiu a redução em um terço e, depois, a prescrição de seu crime. Não deixou de advogar. Foi exatamente Hage, que agora é réu na Operação Epístola, quem o defendeu na ocasião. Lydio da Hora, que já morreu, também foi condenado por tentar subornar os policiais, e conseguiu a prescrição do crime em razão da idade. Os dois constam como donos de dois postos de gasolina em Itaguaí e Campo Grande, na Zona Oeste.

A irmã de Beira-Mar, Alessandra da Costa Portella Vanderlei, é outra que esteve presa. Foi indiciada por lavagem de dinheiro em Rondônia, mas continua em situação regular na OAB. Ela foi acusada de comandar, com a mulher de Beira-Mar, Jacqueline Moraes da Costa, a administração dos bens do traficante que estão em nome de laranjas.

Segundo o MPF, o advogado Eliseu dos Santos Paulino também participa da hierarquia da quadrilha. Ele foi identificado pelo setor de inteligência da Penitenciária de Porto Velho como o Doutor Tamandaré, homem de confiança, responsável pela comunicação do bandido com o núcleo duro da facção criminosa e pela articulação entre os laranjas do bando para a lavagem de dinheiro.

Em todas as passagens de Beira-Mar por unidades federais nos últimos 11 anos, os radares da Polícia Federal e do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) interceptaram esforços de advogados para burlar a fiscalização. Nesse período, pelo menos oito integrantes de seu estafe de defesa foram acusados de envolvimento com o crime organizado: dois deles estão condenados, cinco respondem a ações penais e um, João Kolling, se encontra desaparecido.

CONDENADA COM CARTEIRINHA DA ORDEM

A advogada Gersy Mary Menezes Evangelista, por exemplo, teve seu nome lançado no rol dos culpados na passagem de Beira-Mar pela Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná. Ela foi presa como pombo-correio, em 22 de novembro de 2007, e sentenciada pelo juiz Sérgio Moro a quatro anos e oito meses de prisão e 800 dias-multa. Segundo o juiz, ela “traiu gravemente os ditames legais e éticos que norteiam o nobre ofício da advocacia, servindo-se de sua condição privilegiada para a prática de crimes”.

Embora exista um mandado de prisão contra a advogada em aberto desde maio do ano passado, Gersy continua atuando como advogada para criminosos da mesma facção de Beira-Mar. Ela e outros dois condenados nesse processo estão em situação regular na OAB.

Outros chefes do tráfico do Comando Vermelho adotaram a mesma estratégia de usar advogados para ocultar patrimônio. Beatriz da Silva Costa de Souza foi condenada por servir de laranja para a compra, em 2011, de um imóvel no Méier para Rosemeri Fernandes de Lima, mulher do traficante Marco Antônio Pereira Firmino, o My Thor. Na época, o bandido estava preso na Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.

A polícia provou que foi a mulher dele quem escolheu e passou a morar no apartamento, que, na escritura, estava no nome da advogada. Beatriz foi condenada a quatro anos de prisão em regime aberto, mas conseguiu permutar sua pena para albergue domiciliar. Hoje, trabalha normalmente para criminosos da facção de My Thor.

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‘Ele está simplesmente com problema mental’

Patrick Camporez

27/05/2018

 

 

Ex-advogada de Beira-Mar afirma que bandido não pode exigir terreno que não lhe pertence.

 O terreno disputado por Beira-Mar e Cecília Machado foi registrado em 10 de abril de 2002 em nome da empresa Solidez Administradora e Corretora de Seguros, de propriedade do funcionário público Arnaldo Gomes. Ele é casado com a ex-advogada do traficante.

Documentos indicam que o imóvel foi adquirido pela empresa de Arnaldo Gomes por R$ 95 mil. A venda foi registrada em cartório, em 23 de novembro de 2016, pelo valor de R$ 1,2 milhão, mas corretores que intermediaram a transação dizem que o marido de Cecília recebeu, na verdade, R$ 5,9 milhões.

Esses corretores recorreram à Justiça alegando não ter recebido a comissão combinada. No processo movido contra a Solidez no TJ do Distrito Federal, os corretores alegam que ganharam, pela venda formalizada em 22 de junho de 2016, apenas R$ 5 mil, quando a comissão acertada com Arnaldo teria sido de R$ 295 mil. O valor registrado, sendo eles, está muito abaixo do preço de mercado na Praia da Pipa.

Procurada pelo GLOBO, Cecília Machado alegou que está sendo vítima de perseguição.

— Pode investigar minha vida toda. Sou advogada dele (Beira-Mar) desde 2001 e nunca tive problema algum. Meu marido tinha bens antes de eu começar a defender o Beira-Mar — disse Cecília, acrescentando que o marido é funcionário concursado do Senado. — Arnaldo é uma pessoa totalmente correta e limpa. A Polícia Federal, para me pressionar, colocou meu marido no meio da história para ficar fazendo joguinho. Na verdade, queria que eu fizesse uma delação premiada. Mas não farei isso, porque não cometi nenhum crime.

Em bilhete endereçado ao casal e achado por agentes penitenciários dentro de uma marmita, Beira-Mar exigiu a devolução de “tudo”. Questionada, a advogada reagiu:

— Ele está simplesmente com problema mental. Acorda com remédio, dorme com remédio. Está doente, e eu, como advogada, tenho a obrigação de proteger meu cliente. Beira-Mar não está furioso comigo. Se o terreno não é dele, como que vai ficar furioso?

Cecília disse que que ainda advoga para Beira-Mar junto ao Supremo Tribunal Federal, mas há mais de 12 anos não vê o traficante em presídio — o último encontro “foi três ou quatro anos atrás”, no Tribunal do Júri do Rio:

— O contato é de profissional para cliente.