O globo, n. 30953, 06/05/2018. País, p. 3

 

Explosão de movimentos

06/05/2018

 

 

Já são 150 entidades sem-teto em São Paulo, muitas delas a serviço de outros interesses

O déficit habitacional da cidade de São Paulo, atualmente em 358 mil moradias, e a ausência de uma ação firme do Estado para enfrentar o problema nos últimos 30 anos fizeram explodir o número de movimentos sociais envolvidos na luta por um domicílio: já são pelo menos 150 só na capital. O desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, na última terça-feira, revelou que, entre as entidades, estão grupos que não representam movimento social algum, cobram aluguéis abusivos de famílias miseráveis, atendem a interesses políticos de vereadores e deputados ou ocultam ações do tráfico de drogas.

O cadastro do Ministério das Cidades dá uma ideia da ordem de grandeza de associações e movimentos existentes juridicamente. Essas 150 organizações estão habilitadas a pleitear recursos do programa Minha Casa Minha Vida,

Os moradores da ocupação do Largo do Paissandu relatavam pagar até R$ 400 de aluguel para uma entidade chamada Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM). A Prefeitura de São Paulo diz que nenhum representante do MLSM “participa de debates ou discussões oficiais sobre a política habitacional na cidade”. Na sexta-feira, Ananias Pereira dos Santos, apontado como líder do MLSM, prestou depoimento à polícia. Ele negou liderar o movimento ou que cobrava dinheiro dos moradores.

As dissidências nos movimentos mais tradicionais, como o União de Movimentos por Moradia (UMM), que abriga diversas outras siglas, começaram no início dos anos 2000. As lideranças discordavam sobre a forma e o objetivo das ocupações, e alguns coordenadores de movimentos passaram a achar justo cobrar aluguel das famílias. Além disso, líderes se vinculavam a partidos políticos, e vereadores interessados em cooptar sem-teto ofereciam cargos para os coordenadores em seus gabinetes. Isso foi desvirtuando parte dos movimentos. Um ex-ativista e ex-funcionário da prefeitura conta que uma estratégia desses grupos obscuros é a de invadir prédios sabidamente inabitáveis para, ao serem despejados, passarem a receber auxílio-aluguel da prefeitura — hoje, 28 mil famílias recebem o benefício e outras duas mil estão na fila pelo recurso, de R$ 400 mensais.

— Flagramos falsas lideranças indo sacar o benefício com as famílias e já os obrigando a repassar na íntegra, na boca do caixa — diz o homem, que prefere não se identificar.

Outra manobra é a de combinar uma invasão com proprietários de prédios condenados, o que força o poder público a desapropriar o imóvel num preço que o mercado jamais cobriria.

Movimentos tradicionais repudiam esse tipo de atuação. No Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o grupo mais estruturado, não é cobrada taxa para quem quiser se juntar à entidade. Mas é preciso se comprometer em participar da militância. Uma lista de presença percorre os acampamentos para verificar aqueles que permanecem atuantes ao longo da ocupação. Quanto mais ativo, maior a chance de conseguir uma moradia antes. Os critérios, segundo a organização do movimento, são definidos em assembleia.

— Não achamos justo que alguém que vai para uma ocupação, monta um barraco e nunca mais aparece lá tenha as mesmas condições das pessoas que estão lá no dia a dia, enfrentando dificuldades com o pé no barro — diz Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST e pré-candidato à Presidência pelo PSOL.

Outra organização tradicional de sem-teto, a Frente de Luta por Moradia (FLM) exige que seus integrantes passem por um cursinho político para ingressar na entidade. A FLM foi formada em 2004 pela união de dez movimentos que já atuavam em São Paulo. Ao lado da União dos Movimentos por Moradia, é uma das maiores frentes em atividade no Centro da capital paulista. A cada 15 dias, sempre aos domingos, o grupo organiza encontros em associações de bairro ou em ocupações já estabelecidas. A UMM mantém esquema semelhante, mas com reuniões às segundas.

— O objetivo é discutir a ociosidade dos imóveis na cidade de São Paulo — conta Osmar Borges, um dos coordenadores da FLM.

Morar numa ocupação da FLM exige a adesão a uma série de regras de convivência e militância, que são informadas ao novo morador por escrito logo que ele chega. Quem vive na ocupação do prédio da Avenida Ipiranga, por exemplo, deve pagar R$ 220 por mês para cobrir melhorias no edifício de cinco andares, com porteiro dia e noite e câmeras de segurança. Anualmente, a fachada do prédio é pintada. Se não pagar aluguel por três meses, a pessoa é despejada ou convidada a se explicar. Mas há espaço para negociação. Só uma condição é inegociável: a participação na causa. (Rafael Ciscati, Gabriela Varella, Jussara Soares, Dimitrius Dantas, Cleide Carvalho, Flávia Tavares e Tiago Aguiar).