O globo, n. 30959, 12/05/2018. Rio, p. 9

 

Uma comunidade refém do medo

Gustavo Goulart

Elenilce Bottari

12/05/2018

 

 

Com seu trabalho comunitário e suas denúncias contra a violência policial, a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada em março junto com o motorista Anderson Gomes, voltou a jogar luz numa comunidade que vive em guerra e parece, muitas vezes, ter sido esquecida pelo poder público. Após ter ganhado os holofotes do mundo, em 2002, com o filme “Cidade de Deus”, que retratava o crescimento do crime organizado na comunidade da Zona Oeste, a favela hoje pouco mudou. De janeiro até ontem, os 36 mil moradores tiveram que enfrentar pelo menos 121 tiroteios, segundo dados dos aplicativos Onde Tem Tiroteio (OTT) e Fogo Cruzado, o que significa, em média, um confronto por dia.

E, para piorar, muitas vezes é preciso escapar de eventuais balas perdidas no escuro. Na localidade conhecida como Apartamentos (Apês), por exemplo, a luz está desligada há um mês e dez dias. O problema técnico não é resolvido porque nenhum técnico da concessionária de energia quer se arriscar a entrar na Cidade de Deus.

Ontem, o cotidiano de violência se repetiu. Um tiroteio, desta vez perto da Rua Jessé, na região das Quadras, deixou moradores em pânico. Eles contam que a situação piorou após a morte do capitão Estefan Contreiras, chefe do serviço reservado (P-2) do 18º BPM (Jacarepaguá), morto ao ser abordado por dois bandidos no Pechincha, no último dia 3. Desde então, as operações da polícia na comunidade têm sido constantes. Na quinta-feira, cerca de 50 pessoas enfrentaram o medo e resolveram denunciar ao Ministério Público o que chamam de atrocidades cometidas por PMs. Para ir até o Centro do Rio, alugaram alguns ônibus, que ficaram estacionados perto da Estrada do Gabinal. Antes mesmo de embarcarem, porém, os moradores dizem ter sido intimidados. Acabaram desistindo.

— Não sei como vazou, mas, de repente, vários PMs entraram na comunidade, pediram documentos aos motoristas, tiraram fotografias de suas habilitações. Isso foi uma forma de intimidar. Poucos moradores acabaram aparecendo. Por isso, desistimos de ir. E soubemos que, no caminho que o comboio seguiria, havia policiais montando uma blitz de averiguação, outra forma de intimidação — afirmou um dos moradores ao GLOBO.

IDOSA FOI ROUBADA, DIZEM MORADORES

A comissão moradores contaram ter reunido mais de 500 casos de abusos praticados por PMs na Cidade de Deus. Entre eles, o roubo de R$ 30 mil de uma doméstica de mais de 60 anos, que passou a vida economizando para conseguir a quantia, com a qual sonhava comprar uma casa.

— Policiais usaram chaves micha para entrar nas casas de moradores e levar o que vissem. De celulares a aparelhos de som, de televisores a dinheiro. Tínhamos um grupo no WhatsApp com fotos dos estragos, mas os policiais passaram a fazer revistas e a exigir que as pessoas mostrassem seus aparelhos. Eles pediam a senha e vasculhavam a galeria de imagens. Se vissem fotografia relacionada às denúncias, espancavam a pessoa. Apaguei tudo — diz um morador.

Além dos traficantes e dos abusos de policiais — os excessos seriam de PMs dos batalhões de Choque, Operações Especiais, Jacarepaguá e da UPP local —, quem vive na Cidade de Deus enfrenta ainda o medo de uma invasão de milicianos da vizinha Vila Sapê. A área é controlada por Orlando de Araújo, o Orlando de Curicica, suspeito de envolvimento na morte de Marielle, assim como o vereador Marcello Siciliano.

A Corregedoria da PM disse estar investigando as denúncias e lembrou que queixas podem ser enviadas por e-mail (denuncia@cintpm.rj.gov.br), WhatsApp (97598-4593) ou telefone (2725-9098).