O globo, n. 30987, 09/06/2018. País, p. 6

 

'A prosmicuidade foi muito grande', diz Cabral

Juliana Castro

09/06/2018

 

 

Pela primeira vez, ex-governador cita em valores uso de R$ 20 milhões em seu benefício entre 2007 e 2016

Em depoimento ao juiz Marcelo Bretas, o ex-governador Sérgio Cabral disse que pegou R$ 20 milhões de sobras de campanha para seus gastos pessoais. Ele usou os termos “promiscuidade” e “desonestidade” sobre a prática de caixa 2 em campanha, mas negou ter negociado propina. Em depoimento ontem à Justiça Federal do Rio, o ex-governador Sérgio Cabral (MDB) quantificou, pela primeira vez, o montante que admite ter usado em benefício pessoal entre os anos de 2007 e 2016, período no qual é acusado de ter montado um esquema de corrupção no governo: R$ 20 milhões.

Cabral manteve, porém, a linha de defesa que já havia manifestado em depoimentos anteriores, segundo a qual seu erro foi ter utilizado recursos que haviam sido doados para campanhas eleitorais suas e de aliados. Ele nega ter cobrado propina sobre contratos de empreiteiras com o governo ou mesmo desviado diretamente recursos dos cofres públicos.

Falando ao juiz Marcelo Bretas, o ex-governador discorreu sobre o deslumbramento com o poder, mas manteve as confissões fora do âmbito do crime de corrupção. Ele afirmou ter sido “soberbo” com o poder que ganhou ao longo de duas décadas de carreira política, e que exagerou na ambição de eleger um alto número de prefeitos, vereadores e deputados.

Cabral usou as palavras “promiscuidade” e “desonestidade” para falar sobre a prática de caixa dois em suas campanhas eleitorais. Aparentemente mais emocionado do que em vezes anteriores e mais incisivo em suas declarações, ele negou ter cobrado propina.

— Não soube me conter diante de tanto poder e tanta força política e, de uma maneira vaidosa, quis fazer prefeitos nas cidades, vereadores e deputados — declarou Cabral. — Houve, sim, dinheiro e muito dinheiro.

O juiz Marcelo Bretas lembrou no depoimento que os doleiros e delatores Marcelo e Renato Chebar, que cuidavam das finanças de Cabral, afirmaram que movimentaram em torno de R$ 500 milhões para Cabral. O ex-governador disse que a cifra não está distante da realidade e que, desse montante, pegou cerca de R$ 20 milhões “para a vida pessoal" entre 2007 e 2016. Este total seria, de acordo com sua versão, “sobras de campanha".

— Nunca pedi a um empresário que incluísse um percentual em qualquer obra e serviço.

 

PATRIMÔNIO

O ex-governador disse que foi desonesto ao pedir dinheiro não contabilizado para campanha e ao usá-lo para fins pessoais. Cabral disse ter se deslumbrado com os recursos.

— A promiscuidade foi muito grande. Foi nessa promiscuidade que eu me perdi. Foi nessa promiscuidade que usei dinheiro de campanha para fins pessoais — afirmou. — O conceito de pegar o dinheiro de campanha eleitoral para uso pessoal é desonesto. Pegar dinheiro não oficial é desonesto — disse ele em outra parte do depoimento.

Cabral disse ao magistrado que ajudava, com dinheiro não declarado à Justiça Eleitoral, campanhas de prefeitos, vereadores e deputados. O juiz insistiu em saber quem recebia a ajuda. O emedebista, no entanto, não quis citar nomes. Bretas questionou se o ex-governador poderia abrir mão de seus bens para demonstrar seu arrependimento. Cabral disse que sim:

— Qual é a importância do patrimônio, se não se está com os filhos?

Um dos bens a que o juiz se referiu no fim do depoimento foi a mansão em Mangaratiba, no Sul Fluminense, avaliada pela Justiça em R$ 8 milhões. Bretas havia autorizado o leilão da casa, mas a decisão foi revista pela segunda instância a pedido da defesa de Cabral. O imóvel está no nome da ex-primeira-dama Adriana Ancelmo, atualmente em prisão domiciliar.

O processo em que Cabral depôs nesta sexta-feira apura a lavagem de dinheiro no exterior. Os doleiros Renato e Marcelo Chebar apontaram mais de US$ 100 milhões de Cabral em contas fora do país. O advogado de Cabral, Rodrigo Roca, pediu a repetição do depoimento de seu cliente neste processo porque, no primeiro, o ex-governador estava preso em Curitiba e optou por ficar em silêncio, alegando que a defesa estava prejudicada.

No início do depoimento, o clima foi de descontração entre o juiz Marcelo Bretas e Cabral. Os dois brincaram sobre as situações de seus times, Flamengo e Vasco, respectivamente. O magistrado disse que houve quem o criticasse por ter deixado o ex-governador conhecer o neto, de apenas três meses, durante a audiência, nesta semana, em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi ouvido. O bebê é filho do deputado federal Marco Antônio Cabral (MDB-RJ). Bretas lembrou que os presos têm direitos.

— Não veja em mim um inimigo — disse o magistrado a Cabral. — Não abro mão de tratá-lo com humanidade.

Cabral está preso preventivamente desde novembro de 2016. Esta semana, ele foi denunciado pela 24ª vez na LavaJato — 23 delas pelo Ministério Público Federal no Rio e uma pelo do Paraná. No processo que corre na Justiça Federal de Curitiba, em que foi condenado em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro, a sentença foi confirmada também pela segunda instância. O TRF-4 manteve sua condenação a 14 anos de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Ele tem outras quatro condenações em primeira instância no Rio, com penas que somam mais de 100 anos de prisão.