O globo, n. 30971, 24/05/2018. Sociedade, p. 26

 

Em estado de abandono

Paula Ferreira

24/05/2018

 

 

ONG internacional denuncia abrigos brasileiros ‘desumanos’ para pessoas com deficiência

Aos 15 anos, Leonardo Barcellos descobriu a solidão de dividir um quarto com outras 24 pessoas. Diagnosticado desde a infância com distrofia muscular de Duchenne — uma doença que enfraquece os músculos —, na adolescência precisou ser transferido para uma instituição destinada a atender pessoas com deficiência. As dificuldades de Zélia Barcellos, mãe do jovem, para auxiliá-lo nas atividades do cotidiano e a falta de recursos para contratar um cuidador tornaram o cenário precário do abrigo a única alternativa da família. A partir daí, os dias se converteram em uma rotina dolorosa. Leonardo passava a maior parte do tempo na cama, onde suas fraldas eram trocadas sem privacidade e também onde suas refeições eram feitas. Horas a fio sem qualquer interação, apenas deitado na ala superlotada. O abandono a que pessoas como ele são submetidas em instituições de acolhimento no país foram alvo de um amplo relatório da Human Rights Watch, ONG internacional de defesa dos direitos humanos, divulgado ontem.

O levantamento revela que, em muitos desses centros, os moradores são amarrados na cama, recebem medicação para serem contidos, ficam isolados o dia todo sem nenhum tipo de atividade e não têm qualquer autonomia. Durante um ano e meio, a Human Rights Watch visitou 19 instituições de acolhimento nos estados de São Paulo, Rio e Bahia e no Distrito Federal e identificou violações de direitos individuais registradas no relatório “Eles ficam até morrer”. De acordo com a pesquisa, em geral, essas pessoas chegam às instituições quando ainda são crianças e, a maioria delas, só sai dos abrigos quando morre.

— Identificamos que é um problema sistêmico, não uma característica de uma instituição específica. É uma política geral que tem que mudar. Recomendamos que o Brasil, paulatinamente, implemente um programa de desinstitucionalização — afirma Carlos Ríos-Espinosa, pesquisador sênior da Human Rights Watch e autor do estudo. — A ideia é que eles encontrem serviços na comunidade. Há pessoas que poderiam estar integradas, com apoio para realização de suas atividades cotidianas.

ESCOVA DE DENTE COMPARTILHADA

Segundo a Secretaria Nacional de Assistência, até 2016 havia 5.078 crianças com deficiência vivendo em instituições no Brasil, e 5.037 adultos na mesma situação, número que pode ser maior. Em geral, esses abrigos funcionam com convênios com os municípios e estados e recebem recursos públicos para operação. Em algumas instituições, a situação é tão precária que os moradores compartilham a escova de dente e as roupas. A Human Rights Watch também identificou que mulheres durante o período menstrual recebiam fraldas e não absorventes. Nas instituições são atendidas desde pessoas com deficiências físicas e sensoriais até aquelas com deficiência intelectual e psicossocial.

O relatório foi baseado em 171 entrevistas com crianças e adultos com deficiência, pais ou responsáveis, funcionários dos abrigos, servidores — como secretários de assistência social, promotores — e em visitas feitas pela ONG a essas instituições, cujos nomes não foram divulgados. O resultado aponta que “as condições e o tratamento eram desumanos e degradantes em algumas instituições”.

Hoje, Leonardo Barcellos está com 25 anos e mora provisoriamente com a mãe, porque, com a evolução de sua doença, o abrigo onde vivia não era capaz de oferecer a assistência necessária. Mas o jovem deve voltar a outra instituição de acolhimento em breve.

— O meu sentimento é de não pensar no dia em que eu vou ter que voltar para um lugar como aquele e viver o momento presente com minha mãe. A família opta por colocar em uma instituição por não ter condições. Se o governo ajudasse mais, essas famílias teriam condições de pelo menos pagar um cuidador. Em casa, posso dormir a hora que quiser, ter privacidade, ter minhas próprias coisas.

Soma-se à dificuldade das famílias o fato de o Brasil não ter uma estrutura considerável para auxiliar essas pessoas a levar uma vida normal, com moradias independentes, no caso de adultos, e serviços de apoio como fonoaudiólogos, fisioterapeutas e equipamentos de mobilidade.

— A situação dessas pessoas é preocupante. Enquanto não há um projeto para mudar isso, é preciso fazer um monitoramento mais minucioso para acabar com os abusos que existem atualmente, como contenção física, medicamentos usados inadequadamente, com propósitos não terapêuticos — diz Carlos Ríos-Espinosa.

Para Flávia Parente, membro da ONG Paratodos, que defende os direitos de pessoas com deficiência, o Brasil tem um logo caminho para colocar em prática o que prega na teoria:

— Nossa legislação é uma das mais progressistas em relação ao tema, temos um direito assegurado de educação para todos, temos o princípio da dignidade da pessoa humana. Em termos de legislação estamos muito bem, precisamos de efetivação. A sociedade precisa enxergar essas pessoas, porque atualmente elas são invisíveis.

RECOMENDAÇÕES PARA MELHORAR

A Human Rights Watch destaca que, embora os funcionários tenham boa intenção, são poucos para dar conta dos pacientes de forma adequada e não recebem a orientação necessária. A falta de autonomia ganha força com a situação legal a que são submetidas essas pessoas. Todas são colocadas sob a curatela de um familiar ou mesmo da direção da instituição, o que na prática significa que não podem tomar nenhuma decisão sozinhas, até as mais simples, como sair do abrigo por um curto espaço de tempo. A Human Rights destaca que essa medida é ilegal perante a Convenção Internacional sobre o Direito das Pessoas com Deficiência.

O relatório lista seis recomendações ao governo brasileiro para melhorar o quadro. Entre elas, detalhar um plano para colocar fim à institucionalização, incluindo aumentar os aparatos que servem de apoio para esse público, com a garantia de serviços de qualidade. A Human Rights Watch pede também que o poder público garanta educação inclusiva para crianças com deficiência que vivem nessas instituições. A ONG pede ainda que o governo assegure que nenhuma pessoa adulta com deficiência seja privada de sua capacidade legal.

Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Social afirmou que diversas questões indicadas pelo relatório envolvem ações compartilhadas das esferas municipais, estaduais e federal, e todos têm responsabilidade de cofinanciar e monitorar essas políticas. No caso das 258 unidades destinadas a adultos, a pasta afirma que 89% delas recebem recursos públicos para a manutenção. O ministério diz ainda que solicitou à Human Rights Watch a identificação das instituições para apurar as denúncias, mas a ONG se negou a dar a informação, de forma que “não é possível identificar quais as instituições são, de fato, de assistência social ou recebem cofinanciamento federal”.