O globo, n. 30970, 23/05/2018. Artigos, p. 19

 

Combate ao racismo além do lugar de fala

Luiz Roberto Nascimento Silva

23/05/2018

 

 

Fico espantado de ver como ainda hoje muitas pessoas tentam fingir que não há preconceito racial no Brasil. Essa questão é premente e ficou camuflada porque, até agora, o negro não competia economicamente com o branco. Isso está mudando e mudará ainda mais. Abordei o assunto com outros colaboradores no último número da revista “Trieb”, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.

Como nossas questões estruturais se repetem, precisamos revisitá-las numa verdadeira serventia de ideias fixas. Buscar a origem em nossa História. Durante mais de três séculos e meio, vivemos no universo da escravidão. Em determinado momento, o tráfico negreiro foi a maior atividade econômica da Colônia, superando inclusive a exploração do açúcar e a pecuária. Tão dependente era nosso modelo econômico da escravidão que, com seu término, o Império se desconstruiu.

Não podemos, em sã consciência, crer que, após tantos anos de um modelo econômico calcado nela, não se possa perceber suas marcas no país atual. Ao negro foi permitida uma certa mobilidade social apenas em profissões como esporte e show business. Nessas, o talento impõe-se de tal forma que fica quase impossível impedir o reconhecimento. Nas carreiras que dependem de trajetória mais formal, seja educacional ou acadêmica, manteve-se a barreira.

A população negra no Brasil é a maior fora da África, ultrapassando cem milhões de pessoas. Pela primeira vez, de acordo com o IBGE, a população brasileira deixa de ser predominantemente branca, pois os pretos e pardos representam mais de 55% dela. Isso decorre do crescimento demográfico e também do que os técnicos denominam de desejabilidade social: um número maior de pretos e pardos passou a ter orgulho de serem reconhecidos como tal.

Penso que o movimento negro irá se avolumar no Brasil. É provável que num sentido crescentemente antagônico nos anos vindouros. Isso justifica-se pelos inúmeros anos em que ficou contido. Nossa colonização portuguesa foi menos violenta que a espanhola no restante das Américas. O espanhol derrubava os templos indígenas para sobre eles erigir igrejas católicas. Aqui não. O português se amalgamou com nossa gente, construindo uma nação plástica e amena. Nos Estados Unidos, a população branca, com seu puritanismo, destruiu as religiões negras. No Brasil, elas perduraram. A nossa mulataria e o sincretismo religioso são um fato incontornável em diversos estados brasileiros. A miscigenação biológica e o sincretismo religioso, de certa forma, podem ter adiado a consciência do preconceito, o que não ocorreu em outros países onde o antagonismo foi mais contundente.

Esclareço que este escriba é branco, pertence à camada superior da população econômica e socialmente. Não ocupa, portanto, o lugar de fala. Não posso nem de longe saber a intensidade, dureza e dramaticidade como o racismo é exercido contra a população negra. Se insisto nesse tema — mesmo com o risco de ser mal interpretado — é porque ele é essencial para construirmos um país melhor para todos nós: brancos, pretos e pardos. Prefiro o risco à indiferença.

É natural que o lugar de fala seja preponderante na questão do movimento negro como o é na luta das mulheres. Ocorre que, para que ele possa ocupar corações e mentes de toda a população, precisa expandir-se além do território restrito da legitimidade biológica e pessoal. Num verso famoso, João Cabral nos ensinou que: “um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos”. É o que esse escriba faz ao cantar quando nasce essa manhã.