O globo, n. 30969, 22/05/2018. Artigos, p. 15

 

Com adição de agrotóxicos, por favor

Carlos Andreazza

22/05/2018

 

 

Tramita no Congresso, lentamente, a alcunhada Lei dos Agrotóxicos. Urgentíssima, para substituir a legislação de 1989, cuja defasagem põe em risco não o interesse de Blairo Maggi, mas o do brasileiro que compra milho no mercado. Desnecessário dizer, porém, que a proposta vai longamente amaldiçoada. Em trânsito de lesma na Comissão Especial da Câmara, ensejou, nas últimas semanas, novos protestos apaixonados dos bem-intencionados de sempre — aquela espécie humana peculiar que tanto mais esbraveja quanto mais desconhece o assunto.

Sim, sei que é exercício difícil para os exemplares dessa praga, mas a leitura do texto do projeto — geralmente é assim (vale experimentar) — explica seu objetivo: em suma, agilizar o registro de pesticidas mais modernos aqui. Bom, né? Não. A rapaziada manifestante indignada não leu, não estudou, mas é contra; porque, se trata de agrotóxico, só pode ser ruim, nocivo, opressor, golpe de latifundiários multinacionais, e pronto: arma-se a gritaria. A cena seria surrealista não tivesse pilares metodológicos clássicos a serviço da confusão e da ignorância tragicômicas: aqueles que lutam historicamente contra o uso, no Brasil, de defensivos agrícolas já superados em outras nações são os mesmos que ora lutam contra a lei que permitiria a rápida modernização dos defensivos agrícolas utilizados neste país. Que tal? Curioso e triste torrão é o Brasil, este cuja principal vocação econômica, a agropecuária, desenvolvida pari passu com a melhor tecnologia, distribuidora de riqueza e geradora de milhões de empregos, muitos dos quais com altíssima especialização, é criminalizada pelos mistificadores senhores do discurso da “oportunidade para todos”. Não é incoerência, porém. Há método — insisto.

Sob a mobilização de poderosos grupos de pressão ideológicos, a militância dos hábitos virtuosos encontra fluente caminho para se impor e transtornar quando consegue infiltrar sua cultura de desinformação, via de regra alarmista, nos costumes da população. Quase sempre consegue, com luxuosa contribuição de artistas, jornalistas e outros patriotas do apocalipse. Sobre a produção de alimentos, a deturpação é especialmente depravada. Amedrontado pela propaganda mentirosa do onguismo mais lucrativo, o brasileiro médio foi convencido de que a comida que lhe é oferecida é ruim, talvez mesmo envenenada. Não é isso? Quem nunca se deparou com a impostura segundo a qual aqui se consumiria, individualmente, cerca de cinco litros de pesticidas por ano?

Em que espécie de hortinha mental-moral elitista vive essa gente leviana que propaga a produção quimérica de alimentos orgânicos em larga escala como salvação de uma humanidade contaminada? Quando se deu a perversão de valores por meio da qual hábitos individuais de ricos, não raro exóticos (talvez fanáticos), práticas matematicamente insustentáveis para o conjunto da sociedade, tornaramse ativismo autoritário — para muitos entre os religiosos da pureza razão da própria existência — vendido em nome da saúde alheia ainda que sem a mais mínima comprovação científica?

O que se sabe, seguramente, sobre o alimento orgânico: que não tem vantagem, nutricional ou de sabor, sobre o produto convencional, e que é muito, muitíssimo, mais caro, isso como consequência da produtividade fundamentalmente menor, de crescimento representativo impossível, daí por que, por definição, coisa de abastados — que semearia a fome caso dele dependesse a subsistência mundial. Ou seja: o pobre, para comer, para se nutrir, precisa de pesticidas, e isso — atenção — não lhe faz vítima, mas cidadão plenamente, como só raramente, beneficiandose da inclusão, da inclusão prática, objetiva, permitida pela tecnologia.

Só no Brasil, aliás, defensores agrícolas, glórias da ciência, são chamados de agrotóxico, palavra essencialmente enviesada, criada e difundida para distorcer — para plantar na percepção das pessoas a ideia farsante de que pesticidas são instrumentos garantidores da expansão produtiva irresponsável decorrente da ganância da máfia dos grandes produtores rurais. Não é assim? A verdade, no entanto, é outra: a química aplicada no campo dominou pragas antes consideradas invencíveis, trouxe estabilidade, previsibilidade, às safras, que batem sucessivos recordes, e criou as condições para que o cultivo, por exemplo, de arroz e feijão precisasse hoje de três vezes menos terra que há 40 anos — e tudo isso para entregar comida barata, farta e de boa qualidade.

Curioso e triste país é o Brasil, este cuja gente que concebeu o Bolsa Família, e que zela pela renda do pobre, investe na narrativa que demoniza a agropecuária — atividade cuja excelência leva comida saudável e em conta à mesa do brasileiro real, aquele para quem programa de culinária na tevê é obra de ficção tão distante quanto o reino da Dinamarca, “nação mais orgânica do mundo”, onde a fatia desses produtos do mercado, contudo, não chega a 8%, e a alimentação das pessoas não é aparelho para terrorismo ambiental.