O globo, n. 30988, 10/06/2018. País, p. 3

 

Ao sabor do vento

Igor Mello

Marco Grillo

10/06/2018

 

 

Pré-candidato, Bolsonaro acena ao mercado; deputado, votou a favor de pautas estatizantes

O deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) foi contra a reforma da Previdência, a favor da participação obrigatória da Petrobras na exploração dos campos do pré-sal e defendeu a criação de mais estruturas do Poder Judiciário. Já o pré-candidato a presidente Bolsonaro é um entusiasta da redução do número de estatais, quer menos interferência do Estado nas atividades empresariais e é contrário à expansão dos gastos públicos. Na tentativa de se tornar mais palatável ao empresariado e ao mercado financeiro, Bolsonaro tem suavizado a retórica estatizante e intervencionista que marca sua atuação na Câmara dos Deputados. Na última semana, O GLOBO analisou a votação do deputado em 20 projetos de lei relacionados a temas econômicos que tramitaram no Congresso nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Os votos, frequentemente, entram em contradição com o viés liberal que tenta exibir em sua pré-campanha à Presidência Jair Bolsonaro incorporou à equipe o economista Paulo Guedes, identificado com a corrente econômica.

Os contrastes mais aparentes surgem nos assuntos relacionados à Previdência. Além de ter sido contra a reforma feita no governo Lula, votou a favor da flexibilização do fator previdenciário e contra a criação de um fundo complementar para os servidores públicos. As decisões são contrárias à agenda de redução de gastos públicos.

'A reforma da Previdência, como está sendo proposta pelo governo do PT, visa apenas a duas coisas: fazer a alegria dos empresários do segmento da Previdência privada a longo prazo e conseguir economia de caixa a curto prazo para fazer superávit primário; ou seja, retirar dos já miseráveis aposentados para pagar juros a banqueiras", disse, na tribuna da Câmara, em março de 2003.

A análise das votações mostra ainda uma oscilação entre posições econômicas ortodoxas, associadas à direita, e desenvolvimentistas, à esquerda. Um exemplo é o posicionamento em relação à Petrobras. Em 2010, no fim do governo Lula, Bolsonaro votou com o PT a favor do projeto que instituiu o regime de partilha no pré-sal e a participação obrigatória da estatal na exploração dos campos. Seis anos depois, já no governo Temer, se alinhou com PMDB e PSDB na aprovação da proposta que acabava com a participação obrigatória da Petrobras.

BOLSONARO NÃO TEM CONVICÇÃO NA ECONOMIA"

Para André Perfeito, economista-chefe da corretora Spinelli, a disparada do dólar e a queda da bolsa de valores nos últimos dias mostram que o mercado vê como forte a chance de um segundo turno entre Bolsonaro e Ciro Gomes (PDT) — outro pré-candidato associado a medidas pouco ortodoxas na economia. Ele avalia que Bolsonaro tem um perfil "estatista': Bolsonaro não tem nenhuma convicção na economia. Vai ao sabor do vento. Quem vota no Bolsonaro não está votando no Paulo Guedes alerta.

Essa atitude bastante irregular do Bolsonaro em relação às reformas faz sentido. Um homem que defende a ditadura vai ser a favor do "petróleo é nosso", por exemplo.

O pré-candidato do PSL também votou a favor, em 2013, da criação de três novos Tribunais Regionais Federais; foi favorável, em 2015, à efetivação, sem concurso público, de substitutos de cartórios; e, no mês passado, votou contra o cadastro positivo, assim como o PT. Para o Ministério da Fazenda, a medida aumenta o acesso ao crédito e reduz o spread bancário. Em momentos alinhados aos desejos do mercado, Bolsonaro também foi a favor da criação de um teto para os gastos públicos e da reforma trabalhista.

O cientista político Fernando Schuler, professor do Insper, acredita que as mudanças de posição não prejudicam Bolsonaro entre seu eleitorado mais fiel. Esse público não estaria preocupado com a discussão econômica, mas sim com mensagens que defendam uma suposta retomada da ordem no país. Para ele, os votos de Bolsonaro são coerentes com uma visão "populista': — Minha impressão é que ele (Bolsonaro) se convenceu de algumas pautas liberais. Mas não quer se indispor com seu eleitorado. Por isso, vota contra todo projeto que toque no funcionalismo público, em especial nos militares, ou nos aposentados — afirma. — Bolsonaro tem faro para o discurso popular, por isso é um populista. Considera isso em toda votação que remotamente possa ser instrumentalizada contra ele em seu eleitorado. Procurado via assessoria de imprensa, Bolsonaro não quis falar.

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No papel de espionado

Juliana Dal Piva

10/06/2018

 

 

Dossiê de 37 páginas mostra como Jair Bolsonaro e sua família foram monitorados por agentes do SNI entre 1986 e 1989

Quando o então capitão Jair Messias Bolsonaro escreveu o artigo “O salário está baixo”, no início de setembro de 1986, ele sabia que estava cruzando a fronteira da hierarquia e da disciplina na carreira militar. Quem fala pela tropa é só o comandante. Foi punido, inclusive, com 15 dias de prisão. Só não sabia que, a partir disso, ele e sua família seriam espionados ao longo de anos por agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) do mesmo modo como diversas lideranças de esquerda ainda eram vigiadas, mesmo após a ditadura. E mais: o artigo seria usado pelo PCB e PCdoB para mobilizar suas bases contra o Exército.

É o que mostram informes produzidos pelo órgão e consolidados em um dossiê de 37 páginas. Os documentos do SNI integram o acervo do Arquivo Nacional. Classificado como “secreto”, o prontuário 097160-08 documentou momentos da vida de Bolsonaro entre 1986, quando o artigo foi publicado na revista “Veja”, até julho de 1989, quando ele já era vereador.

O primeiro registro é justamente sobre o artigo. Em seguida, foi anotado o conteúdo de um telex do Comando Militar do Leste (CML) relatando que integrantes da tropa haviam gostado do texto e que, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, chegou a ser marcada — e proibida pelo comandante — uma reunião de oficiais sobre o assunto.

Um mês depois, em outubro de 1986, um informe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) descreveu que “os comitês central e regional do PCB e do PCdoB emitiram instruções no sentido de que seus militantes explorassem ao máximo o descontentamento salarial dos militares” a partir do artigo de Bolsonaro.

Um telex do CML também mostrou que até a então mulher de Bolsonaro, Rogéria Nantes, era vigiada. Em 10 de setembro, o SNI foi informado de uma entrevista dela.

Em 1987, quando Bolsonaro voltou a aparecer na “Veja” em uma reportagem na qual contava sobre um plano para colocar bombas em quartéis, a vigilância se intensificou. Ele teve de responder a um Conselho de Justificação, espécie de inquérito, e o SNI esteve o tempo todo acessando os depoimentos e documentos do processo antes da análise final dos oficiais que o julgaram. Bolsonaro foi condenado pelo conselho, mas absolvido no STM. O capitão nega que tenha pensado no plano e, procurado, não quis se manifestar.