O globo, n. 30988, 10/06/2018. Sociedade, p. 38

 

As mulheres que resistiram à ditadura e ao patriarcado

Helena Borges
10/06/2018
 
 

Quando o feminismo era uma pauta secundária no Brasil, elas conquistaram a igualdade lutando ombro a ombro com os homens

Quando artistas fizeram uma greve contra a censura, em fevereiro de 1968, um cordão de mulheres marcou a História. De mãos dadas, Eva Todor, Tônia Carrero, Cacilda Becker, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell caminhavam à frente da multidão que marchou pelo Centro do Rio. Meses depois, em outubro do mesmo ano, o congresso da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna, São Paulo, foi invadido e desmantelado pelas forças de repressão. Entre os cerca de 900 estudantes presos, mais de 140 eram mulheres. O feminismo ainda não se configurava como um movimento organizado no Brasil, mas um grupo de mulheres se destacou por uma atitude bastante feminista, ainda que não se dessem conta disso: elas lutaram lado a lado com os homens contra a ditadura que se instalara em março de 1964.

A cineasta Lúcia Murat foi uma das estudantes presas no Congresso da UNE. Mais tarde, após o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), entrou na clandestinidade e veio a integrar a luta armada. Liberada após o congresso, Lúcia voltou a ser presa em março de 1971, aos 22 anos. Na sede do DOI-Codi, na Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, foi torturada com pau de arara, choques elétricos e espancamentos. A história de Murat, de uma de suas companheiras de prisão, a ex-presidente Dilma Rousseff, e de outras mulheres que foram presas políticas será descrita no documentário “Torre das donzelas”, com previsão de lançamento para 2019. No filme, elas refletem sobre as torturas sofridas e sobre o impacto daquele momento na História, 50 anos depois.

Dentro dos movimentos de resistência, conta Lúcia Murat, as conversas sobre feminismo eram limitadas a ambientes informais. Mas, diz, uma mulher participar da luta armada já era um ato feminista por si.

— No momento da guerrilha, o fato de estar lutando ombro a ombro com os homens faz com que você rompa com o machismo, mas isso não significa que, depois, não exista um retorno à situação anterior — observa Murat, que em 1989 lançou o filme “Que bom te ver viva”, com depoimentos de ex-presas políticas.

INVISIBILIDADE DAS MULHERES NEGRAS

O machismo era sentido também por mulheres que viviam na clandestinidade, caso de Maria Amélia de Almeida Teles. Hoje diretora da União de Mulheres de São Paulo, em 1968 ela vivia escondida com seu companheiro e seu filho em uma casa onde ajudava a produzir o jornal do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

— Eu questionava esse tratamento discriminatório, as relações desiguais tanto no poder de decisão quanto nas organizações, mas esse era um assunto para ser tratado depois da revolução. Em 1968 surgiram as estudantes e elas eram muito mais questionadoras que eu — diz.

Amélia Teles conta que foi vendo o posicionamento enfático das estudantes que ela também decidiu se impor mais e incluir informações sobre questões femininas no jornal que ajudava a escrever. No entanto, lembra, uma parcela importante das mulheres não era tratada devidamente dentro do próprio debate feminista. Uma de suas “estrelas-guias”, afirma, era Angela Davis, feminista americana que militava também nos Panteras Negras. Parte das brasileiras ainda não conhecia seu nome. O livro “Mulheres, Raça e Classe”, por exemplo, que lançou em 1981, só foi publicado em português em 2016.

— Assim como dentro da esquerda existe a misoginia, dentro do feminismo branco por muito tempo as mulheres negras foram ignoradas. O que há de mais importante no feminismo brasileiro atual é o protagonismo das mulheres negras — afirma Teles.

Já em 1968 ativistas negras criticavam o feminismo branco por ignorar as opressões sofridas pelas mulheres de cor. Nos Estados Unidos, desde 1963 a escritora Alice Walker já vinha falando do “Mulherismo”, atualmente mais conhecido como feminismo negro. No Brasil, porém, esse movimento só veio a ganhar força a partir da década seguinte.

FEMINISMO GANHA O CENTRO

A jornalista Rose Nogueira, que foi companheira de cela de Dilma e hoje preside o grupo Tortura Nunca Mais, foi uma das que, depois da resistência, criou formas de dar voz às questões feministas. Na década de 80, participou da criação do programa TV Mulher. Antes disso, lembra de viver períodos em que as redações jornalísticas eram majoritariamente masculinas.

— Em 1968, no jornal “Folha da Tarde”, só havia três mulheres além de mim.

Sua colega de jornalismo, Vilma Amaro, observa que ainda em 1968 havia um questionamento sobre como encaixar as questões de gênero dentro dos debates sobre democracia.

— É claro que a gente sabia que para se chegar a uma sociedade democrática e igualitária seriam necessários mais direitos para as mulheres, mas havia uma discussão sobre se a questão do gênero deveria entrar na luta contra a ditadura ou ser debatida depois.

Vilma Amaro ressalta que jornais feministas vieram a surgir nos anos seguintes, como o "Brasil Mulher", criado em 1975.

A economista Lena Lavinas vê como fundamental a influência dos movimentos internacionais. Em 1968, ela tinha 15 anos e o mais próximo que conseguia chegar dos movimentos libertários eram as reuniões na Aliança Francesa, onde conversava sobre as movimentações na França, para onde rumou no ano seguinte. Lavinas lembra que procurou Simone de Beauvoir para pedir participação em abaixo-assinados e da reverência que tinha à filósofa.

— Da mesma forma que Einstein disse que E=m.c² e revolucionou a física, Simone de Beauvoir revolucionou nossas vidas ao dizer que não se nasce mulher, torna-se mulher.