O globo, n. 30988, 10/06/2018. Economia, p. 29

 

Mudanças de planos

Rennan Setti

Cássia Almeida

10/06/2018

 

 

Com alta do dólar, empresas reveem estratégias e ampliam busca por proteção cambial

Na semana em que a cotação do dólar chegou a quase R$ 4, analistas consideram que a situação interna pesou mais que o cenário externo adverso para a valorização forte e rápida da moeda americana frente ao real, a maior entre 147 divisas. A greve dos caminhoneiros e seus desdobramentos, com medidas controversas adotadas pelo governo e impasse em decisões importantes como a tabela do frete, mostraram aos olhos dos investidores um país com presidente frágil e economia combalida. Anteciparam para os mercados financeiros volatilidade que só se esperava às vésperas das eleições. A mudança de cenário fez crescer a procura de empresas por proteção contra a desvalorização do real. Em maio, a busca por contratos de dólar a termo (os NDFs, da sigla em inglês), que travam a cotação da moeda e evitam perdas para as companhias, cresceu 36% na Bolsa de Valores, para R$ 14,4 bilhões.

A indústria planeja cortar margens, diminuir descontos e até reduzir produção, já que a economia fraca dificulta repassar a alta dos custos aos preços.

— Embora as empresas consigam fazer proteção cambial, outras terão de renegociar com fornecedores e varejo para repassar o mínimo ao cliente. As empresas estão com margens comprimidas, mas sabem que, por causa do desemprego, repasses podem reduzir consumo — disse Sérgio Duarte, vicepresidente da Firjan e dono da marca Chinezinho.

Segundo ele, empresas que importam para o varejo talvez tenham que cortar produção. Alexandre Ramos, diretor da Fábrica de Bolo Vó Alzira, conta que a farinha subiu 33% em uma semana, afetada pelo dólar (o trigo é importado) e pela greve:

— Não vamos repassar para o preço, por enquanto. Não queremos perder clientes. Vamos esperar para ver como os preços vão se comportar.

Segundo Flávio Castelo Branco, da CNI, a maior parte das indústrias usa insumo importado e, com a volatilidade, fica difícil formar preços e o risco de perder dinheiro aumenta, até para exportadores que se beneficiam de dólar mais valorizado:

— Indústrias automobilística, eletrônica, química, farmacêutica, de perfumaria e até o agronegócio sofrem com a alta do dólar. Para exportadores, há desconto no preço quando o real desvaloriza, mas, se a moeda valoriza depois, o exportador perde.

A consequência será a retomada mais lenta da economia. Na sexta-feira, o Banco Itaú revisou previsão para o PIB de 2% para 1,7%, e o Banco Safra, de 2,8% para 2%. Previsões que chegaram a 3% no início do ano, com os mais otimistas projetando até 4%. Hoje, 2% é o teto. O JP Morgan Chase espera alta de 1,2%, quase o mesmo desempenho de 2017, que foi de 1%, após dois anos de recessão.

— O governo perdeu a força, e as eleições entraram em pauta antes da Copa, em vez de depois, como se esperava — resumiu José Alberto Tovar, sócio-fundador da Truxt Investimentos.

INCERTEZAS SOBRE POLÍTICAS QUE SERÃO ADOTADAS

O quadro eleitoral, com os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas não mostrando compromisso com as reformas defendidas pelos investidores, principalmente a da Previdência, só aumenta as turbulências. O risco-país do Brasil medido pelos CDS (seguro contra calote da dívida soberana) subiu 28%, de 196 para 251. Foi o maior aumento entre os 11 emergentes do G-20. Excluindo o Brasil, o risco ficou estável no período (alta de 2%).

Para Sergio Werlang, ex-diretor do Banco Central (BC) e economista da FGV, o resultado é uma economia que “está bem aquém do seu potencial”:

— Há incerteza sobre as políticas que vão ser adotadas para pôr o Brasil nos trilhos. Ninguém está tomando atitudes que impliquem longo prazo.

O cenário externo aumenta a incerteza. A alta de juros em curso nos Estados Unidos, a tensão com a renúncia americana ao acordo nuclear com o Irã e a crise na Itália, reduzindo a expansão na região, aumentaram a aversão aos emergentes.

— Os investidores botam todo mundo no mesmo balaio. O que aconteceu há duas semanas (greve) dá um sinal de que o governo está paralisado, sem credibilidade. Para complicar, teremos uma das eleições mais imprevisíveis da História recente. Fatores domésticos vão intensificar queda do real — afirma o economista Carlos Primo Braga, professor da Fundação Dom Cabral e professor do IMD (uma das melhores escolas de gestão da Europa).

Luís Afonso de Lima, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e Globalização Econômica (Sobeet), afirma que o mercado demorou a perceber a gravidade do quadro, tanto externo quanto interno. No câmbio à vista, até a última sexta-feira, o real tinha desvalorizado 5,8% desde 21 de maio (início da greve). Os contratos de juros com vencimento em janeiro de 2020, que começaram a semana negociados a 7,6% ao ano chegaram a 9,4% na sexta-feira.

— O mercado tinha uma visão mais benevolente, acreditando que um candidato reformista tinha chance de ir para o segundo turno, que a reforma da Previdência seria feita por qualquer candidato. Acreditavam que as condições externas seriam as mesmas de 2017. O quadro internacional ficou claro: aconteceu com a Argentina, com a Turquia, o seguinte foi o Brasil. E, agora, a sensação é que mesmo um candidato reformista terá dificuldade para aprovar a reforma da Previdência — avalia Lima.

Wilber Colmerauer, da consultoria financeira EM Funding em Londres, avalia que a greve serviu de catalisador, antecipando a tensão eleitoral:

— A greve fortaleceu os candidatos extremos e enfraqueceu os de centro, que são os favoritos dos investidores. Com isso, as eleições se tornaram decisivas para solução do problema fiscal. O lado positivo é que as fragilidades ficaram em evidência.

Colmerauer não acredita que o dólar vai continuar disparando. Segundo ele, as contas externas estão equilibradas — o déficit com o resto do mundo é de 0,4% do PIB — um fundamento importante para conter a alta da moeda americana:

— O dólar tende a se estabilizar nesse patamar, se não tivermos mais confusão política. Pode ser que ele chegue de novo aos R$ 4, mas o ajuste já foi feito.

A subida do dólar trouxe à memória o ano de 2002, quando a moeda custou mais de R$ 4 (R$ 7,20 em valores atuais), conforme a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva ficava mais certa. Carlos Kawall, economista-chefe do Banco Safra e que foi secretário do Tesouro Nacional, vê diferenças:

— Em 2002, o Brasil vivia uma situação dramática. Tínhamos uma reserva internacional bem menor (eram US$ 35 bilhões e hoje são US$ 380 bilhões), 30% da dívida interna eram indexados ao dólar e dívida externa grande. O colchão do Tesouro não passava de “esteirinha de palha”. Começouse a achar que havia risco de calote da dívida interna. O governo recorreu ao FMI. Hoje, o colchão do Tesouro é de R$ 570 bilhões. Ele admite uma característica desfavorável: — O lado fiscal é muito pior.

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‘Os mercados se comportaram de forma disfuncional, entraram em modo pânico’

Carlos Kawall

10/06/2018

 

 

Para economista-chefe do banco Safra e ex-secretário do Tesouro, após greve dos caminhoneiros, ‘lógica perversa’ dominou juros e dólar e BC demorou a agir. Ele destaca que país tem ‘reservas e caixa expressivos’

O que justifica a turbulência do câmbio na última semana?

Parte da tendência de valorização do dólar tem a ver com o cenário internacional, enquanto outra parte está relacionada com as eleições. Daqui para frente, essas duas variáveis continuarão em jogo. Só que o movimento que tivemos na última semana não foi baseado em nenhuma das duas nem, tampouco, em fundamentos econômicos. O que houve foi que os mercados se comportaram de forma disfuncional, entraram em modo pânico, ajudados por falhas de comunicação do Banco Central (BC).

Quais falhas?

Um movimento de forte valorização do dólar requer ação do BC e do Tesouro associada a muita comunicação. Até a tarde de quinta-feira, havia um déficit de comunicação do BC. O problema começou ainda na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em meados de maio (quando o BC surpreendeu o mercado ao manter os juros em 6,5%, após ter indicado que cortaria a taxa Selic). Aquela falha foi corrigida. Mas, quando o dólar começou a subir muito rapidamente nos últimos dias, o mercado começou a achar que haveria elevação de juros. O raciocínio era: se ele deixou de cortar a Selic com o dólar a R$ 3,60, certamente ele subirá a taxa com o câmbio em R$ 3,80. Aí, a comunicação demorou a entrar, alimentando toda a perversidade da relação entre dólar e juros.

Que perversidade é essa?

Desde a greve dos caminhoneiros, o mercado entrou em uma lógica perversa entre o juro e o dólar. Quando os juros começam a subir, muita gente compra dólar para se proteger, e isso faz os juros subirem mais. A alta de um alimenta a do outro. Essa relação foi incrementada pelo ruído causado pela comunicação do BC na última reunião do Copom e com o próprio BC sugerindo que existe hoje uma ligação mais próxima entre câmbio e inflação. O ápice da preocupação com essa dinâmica se deu na quinta-feira, com a percepção de que a forte alta do dólar levaria o BC a subir juros.

Mas a comunicação do BC, enfim, conseguiu corrigir os erros?

Sim, tanto que na sexta-feira o dólar caiu 5%. Pelo menos terminamos a semana de forma positiva. Temos reservas internacionais e caixa expressivos. E eles servem justamente para ajudar o mercado a ganhar serenidade e deixar de se comportar de maneira disfuncional. Mas é claro que não dá para voltarmos para os níveis que tínhamos em abril, porque houve, sim, uma “reprecificação” dos ativos por causa daqueles fatores originais: valorização global do dólar e maior incerteza eleitoral.