O globo, n. 30984, 06/06/2018. Sociedade, p. 26

 

Nação dividida pelo aborto

Janaíana Figueiredo

06/06/2018

 

 

Sob ruidosas manifestações, Parlamento começa hoje a debater descriminalização

-BUENOS AIRES -Desde que começaram os debates legislativos, no último dia 10 de abril, 738 pessoas discursaram no Parlamento argentino sobre o projeto de legalização do aborto apresentado em março, com o apoio de 71 deputados do país. Pela primeira vez na História da Argentina, Executivo e Legislativo decidiram impulsionar um debate que provocou um racha na sociedade e colocou a Igreja e grupos conservadores em estado de alerta.

Na esteira da vitória do “sim” no referendo realizado no mês passado na Irlanda — país com fortes raízes católicas — sobre a legalização do aborto, por 66,4% votos favoráveis, os argentinos se preparam para uma votação inédita na Câmara, marcada para o próximo dia 13 de junho, e uma disputa que promete ser acirrada no Senado, onde o poder de influência da Igreja é ainda maior. Hoje, a iniciativa começará a ser discutida em comissões parlamentares prévias, e o clima entre deputados a favor do aborto legal é de que o projeto tem grandes chances de obter sinal verde, na semana que vem.

A campanha pró-aborto foi muito mais impactante e ruidosa do que a de grupos que se opõem ao projeto, cujo debate foi defendido até mesmo pelo presidente Mauricio Macri em seu discurso anual no Congresso, em março passado. Na noite da última segunda-feira, o movimento Nenhuma Menos, que há vários anos vem organizando manifestações em repúdio aos assassinatos de mulheres, reuniu milhares de pessoas no centro de Buenos Aires para unir-se à cruzada a favor do aborto legal. Os lenços verdes, símbolo das militantes pró-aborto, invadiram a praça em frente ao Congresso Nacional, cenário de uma queda-de-braço que está roubando a cena até mesmo da Copa do Mundo.

 

POSSÍVEL IMPACTO NO BRASIL

O resultado da votação na Argentina promete ter impacto fora do país, sobretudo em vizinhos como o Brasil, onde iniciativas desse tipo ainda não foram discutidas. O Uruguai descriminalizou o aborto em 2012 — na América do Sul, além dele, apenas as Guianas legalizaram totalmente a prática. A Cidade do México e pequenas ilhas da América Central também permitem o aborto: Martinica, Guadalupe e Ilhas Virgens Britânicas.

A Casa Rosada está dividida, como o país, e a própria postura final do chefe de Estado ainda não foi revelada. De acordo com o jornal “La Nación”, de 20 ministros do governo Macri, dez são a favor do aborto legal, três apoiam a iniciativa, mas fazem algumas observações, cinco disseram ser contra e dois preferiram não opinar. As posições no Executivo refletem o que se vive em toda a Argentina.

Basta fazer uma busca com a palavra aborto no Twitter para perceber o grau de sensibilidade e tensão que o debate instalou na sociedade. Apresentadores de TV, atrizes, jornalistas, políticos e intelectuais mergulharam numa discussão pública que nunca antes tinha acontecido. De um lado, os que respaldam o aborto legal e o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo. Do outro, os que dizem defender “as duas vidas”, a da mulher e a do bebê. Na maioria dos casos, é reconhecida a existência de um problema real: não há estatísticas oficiais, mas estima-se que são realizados entre 486 mil e 522 mil abortos clandestinos por ano na Argentina.

Dados do Ministério da Saúde de 2016 indicam que naquele ano morreram 245 mulheres grávidas, por diferentes motivos. Desse total, 17,6% (ou seja, 43 mulheres) foram identificadas como “grávidas falecidas por abortos”. Isso significa que o aborto é a principal causa individual de mortalidade materna na Argentina, e esse drama social afeta, principalmente, setores de baixa renda. O Código Penal do país permite o aborto em casos de estupro ou risco de vida ou de saúde para a mãe, mas esse direito, na maioria dos casos, não é respeitado.

As divergências surgem na hora de propor soluções ao problema. Para alguns, a legalização do aborto reduzirá de forma expressiva o número de mortes. Para outros, são necessárias políticas de prevenção e cuidado da mulher, mas sem atentar contra o que já consideram uma vida que também deve ser protegida.

Nas universidades, escolas e ruas da capital argentina, milhares de mulheres passaram a usar ou simplesmente amarrar na bolsa ou mochila o lenço verde da campanha pró-aborto. Os debates se multiplicam, dentro e fora das redes sociais. Colégios católicos realizaram marchas contra a iniciativa, enquanto em instituições como a Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Buenos Aires estudantes organizaram discussões sobre o assunto.

No último dia de palestras no Congresso, na semana passada, a sensação era de que em quase dois meses a campanha próaborto conseguiu importantes vitórias e, principalmente, instalar a expectativa de que é possível vencer uma batalha que, no começo, parecia perdida.

— O que aconteceu na Irlanda teve impacto na Argentina. Estamos vivendo um processo profundo de reivindicação dos direitos das mulheres, que vai muito além da demanda de aborto legal. Se continuarmos nas ruas, vamos vencer — disse ao GLOBO a deputada Myriam Bregman, da Frente de Esquerda.

Para ela, “o aborto legal deve ser um direito para as que estamos nas ruas lutando pelos direitos das mulheres e das crianças. Somos as mesmas pessoas e não vamos deixar que a Igreja nos imponha suas crenças e decida por nós”.

Do outro lado do ringue, militantes contra o aborto como Julieta Bosch, da associação Mais Vida, acreditam que “dentro do ventre de qualquer mãe existe um ser humano que deve ser protegido”.

— A solução de proteger a vida materna não pode significar a desproteção de outro ser humano. Temos de buscar outra solução, superior, que salve as duas vidas — afirmou Julieta.

Para ela, aprovar o aborto legal é “claudicar na busca de uma alternativa que não afete a mãe e o filho”.

— Existem trabalhos científicos que mostram os problemas psicológicos derivados de um aborto. Vamos lutar até o final — enfatizou Julieta.

Alguns discursos viralizaram nas redes sociais, entre eles o de Mariana Rodríguez Varela, militante contra o aborto legal, que acusou os deputados que já expressaram sua decisão de votar a favor da iniciativa de terem “assinado projetos de pena de morte para bebês que ainda não nasceram”.

— Um aborto na semana 14 (limite imposto pelo projeto em debate) é tortura — denunciou Mariana