O globo, n. 30981, 03/06/2018. Economia, p. 24

 

Após 20 anos, planos de saúde esbarram em alta de custos

Luciana Casemiro

03/06/2018

 

 

Lei criada em 1998 não se modernizou. Clientes sofrem com preços elevados

“Esta lei entra em vigor noventa dias após a data da sua publicação”. Este artigo da Lei de Planos de Saúde, a 9.656, é o único da regulação, promulgada em 3 de junho de 1998, que se mantém intacto. Vinte anos, 45 medidas provisórias e algumas centenas de regulamentos da Agência Nacional de Saúde (ANS) depois, o marco regulatório do setor, que tem mais de 20% da população entre seus beneficiários, está na berlinda.

Num cenário de perda de usuários — a redução foi de três milhões nos últimos três anos — e de crescimento dos custos, as operadoras de planos de saúde pedem uma desregulamentação do setor. Do outro lado, consumidores cobram maior controle nos reajustes e garantias de cobertura e acesso aos serviços.

PESO MAIOR QUE ESCOLA

Desde o fim do ano passado, está parado na Câmara, o Projeto de Lei 7.419/2006, que reúne 153 textos que tramitavam na Casa, e pretende reformar a Lei dos Planos de Saúde, com propostas para criar modelos mais acessíveis para os consumidores.

Nos últimos anos, os planos de saúde vêm ocupando cada vez mais espaço no orçamento das famílias. Em janeiro de 2009, a despesa representava 2,9% de todos os gastos no domicílio. Nove anos depois, subiu para 3,9%. No Rio de Janeiro, chega a representar 5,5%, ultrapassando aluguel e mensalidade escolar. Os planos de saúde, desde que existem, são reajustados acima da inflação média. Nos últimos anos, essa distância vem aumentando. Enquanto o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo IBGE, ficou em 4,57% no acumulado em 12 meses até maio de 2017, o reajuste do serviço foi de 13,57%, aumento três vezes maior que a inflação.

SÓ 20% DE PLANOS INDIVIDUAIS

No mercado de planos de saúde, que inclui mais de 20% da população brasileira, cerca de 80% dos contratos são coletivos. E apenas 20% são planos individuais, que garantem maior proteção ao consumidor, com controle de reajuste e impossibilidade de rompimento unilateral pela operadora. A volta da oferta dos planos individuais é um pleito recorrente das entidades de defesa do consumidor. Mas o controle dos reajustes nos contratos individuais, segundo especialistas, é o maior entrave para que as grandes empresas voltem a atuar nesse segmento. E é nesse ponto que a ANS trabalha, no momento, diz o presidente da agência, Leandro Fonseca.

— Estamos trabalhando, desde o ano passado, num modelo para que o reajuste seja mais previsível e transparente, reduzindo o grau de incerteza das empresas — explica.

Para Solange Beatriz Palheiro Mendes, presidente da FenaSaúde, que reúne seguradoras que atuam no segmento, a Lei 9.656 já cumpriu a sua finalidade.

— Era preciso proteger os mais fracos naquele momento, que eram os consumidores e os prestadores de serviço. A sociedade brasileira mudou, a medicina também evoluiu, vieram novas tecnologia. Precisamos adequar a lei a essa nova realidade para dar maior acesso à população. Não estamos falando em desregulamentação, a lei precisa atuar nas falhas de mercado.

Na opinião da executiva, entre os pontos que precisam ser rediscutidos está o controle de reajuste. Ela defende a liberação com monitoramento, para evitar cobrança de preços extorsivos:

— A regra está dada, esse setor é regulado e assim precisa ser. Mas o controle do reajuste com fórmulas artificiais levou, por exemplo, à redução da oferta dos planos individuais do mercado.

SETOR QUER NOVO MODELO

Fonseca, da ANS, diz que o setor acompanhou o mercado formal de trabalho, que em outras partes do mundo também é o principal contratante da saúde suplementar. Ele afirma que mais de 400 operadoras negociam este tipo de contrato e há mais de quatro mil planos individuais comercializados atualmente.

Mario Scheffer, professor da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), destaca que estudo realizado pelo escritório europeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 53 países da região que monitora aponta que em apenas 11 deles os planos de saúde respondiam por mais de 5% dos gastos totais com saúde.

— Nos sistemas universais, como se diz o nosso, em média, mais de 70% são gastos públicos. No Brasil, mais de 50% são gastos privados. Desse total, cerca de 34% correspondem aos planos, o resto são gastos com medicamentos e do próprio bolso, com consultas etc. O tamanho desse mercado não é compatível com um sistema que se diz universal — conclui o especialista, lembrando que esse setor movimenta anualmente cerca de R$ 170 bilhões.

Para Reinaldo Scheibe, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), após várias mudanças, a Lei dos Planos de Saúde acabou ficando desequilibrada. Na sua visão, há uma proteção exacerbada ao consumidor, que pode levar a uma redução ainda maior de ofertas no mercado de saúde suplementar.

— A lei tem que ser melhorada imediatamente, prever limite de custos, trazer equilíbrio. Não adianta querer regular mercado de planos coletivos. Se proteger excessivamente o consumidor, o setor vai encolher. A lei precisa prever novos produtos, modelos adequados ao envelhecimento da população e que garantam segurança jurídica — diz Scheibe.

Para a advogada Maria Stella Gregori, que participou da construção da Lei dos Planos de Saúde como representante do Procon-SP e compôs uma das primeiras diretorias da ANS (criada em 2000), a regulamentação precisa ser revista, mas não “a toque de caixa”, como, na avaliação dela, estava sendo conduzido o Projeto de Lei 7.419, que pretendia reformar o setor.

— A lei trouxe avanços inequívocos. O setor era o mais reclamado nos órgãos de defesa do consumidor e hoje representa menos de 2% das queixas encaminhadas aos Procons. No entanto, há lacunas. A lei errou, por exemplo, ao não equiparar as garantias de planos individuais e coletivos.

ENVELHECIMENTO E TECNOLOGIA

Para o presidente da ANS, é preciso envolver toda a sociedade nas discussões sobre a mudança do setor.

— Hoje o grande desafio é como vamos lidar com o encarecimento dos serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados, o envelhecimento da população e a introdução de tecnologia, diz Fonseca.