Valor econômico, v. 19, n. 4500, 10/08/2018. Opinião, p. A12.

 

Eletrobras, Dutobras e o Jaboti

Edvaldo Santana

10/08/2018

 

 

Nos últimos tempos tenho mostrado as idiossincrasias do aparato regulatório do setor energético brasileiro. Foi o que fiz em artigo no Valor de 13 de novembro de 2017 e 9 de abril de 2018. O assunto é aqui ampliado, para destacar a criatividade da estrutura política vigente para transformar uma boa ideia em uma peça de muito mau gosto.

No fim de 2017 o governo enviou ao Congresso a Medida Provisória (MP) 814, conhecida como "MP da Eletrobras ". A motivação era importante: a privatização da holding federal do sistema elétrico. Quatro meses depois, percebe-se que a MP contempla de tudo, menos a privatização, que, repita-se, era seu objetivo. Um golpe de mestre. Com emendas sem qualquer vinculação com o objeto, a MP serve agora para carregar os "espíritos" da ineficiência e de outras coisinhas mais. Não poderia ser diferente: a MP chegou ao Congresso com uma página e três artigos, e já ganhou 30 páginas e 27 artigos, alguns com temas emblemáticos.

Destaco quatro deles, a começar por Angra 3, talvez, no setor elétrico, o principal símbolo do descaso, fruto do estatismo desmedido. A usina está com obras paralisadas, mas lá já foram enterrados mais de R$ 15 bilhões, que hoje não valem a metade disso. Em um sistema no qual, equivocadamente, as hidrelétricas, quando muito, são construídas sem reservatórios, a energia nuclear é um bom caminho para a segurança do abastecimento, mas isso não pode se dar a qualquer custo. Uma das emendas à MP autoriza que a tarifa de Angra 3 seja elevada de R$ 242/MWh para R$ 500/MWh, a pretexto do uso de preços internacionais. O resultado é que os consumidores suportarão um custo adicional de quase R$ 2 bilhões/ano.

O segundo caso é uma aula prática dos efeitos do poder de monopólio. Em fevereiro de 2000, temendo o racionamento que acabou acontecendo entre 2001 e 2002, o governo criou o Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT). Tal programa assegurava o fornecimento de gás natural por 20 anos, conforme preço estabelecido em um decreto. Contudo, a Petrobras tem ameaçado com a interrupção do suprimento de gás, já sendo isso efetivo para uma das usinas, a Termofortaleza.

O argumento da supridora consiste no preço do combustível, US$ 4/MMBTU, quando ela mesmo já o vende por até três vezes mais. Então, o que fazer? Obrigar o cumprimento do contrato ou simplesmente achar uma MP e nela colocar mais um jabuti? Claro, optou-se pela segunda alternativa, mais fácil, convencional nos dias atuais.

Não é a primeira vez que a monopolista do gás usa tal tática. Na primeira, em 2004, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostrou-lhe que não aceitaria a artimanha. Na segunda, em 2007, o governo a fez assinar um Termo de Ajustamento de Conduta que, pasmem, determinava tão somente o cumprimento do contrato. Nesta terceira oportunidade, o caminho das pedras para aumentar o preço do gás parece ter sido encontrado. A Termofortaleza, que confiou em um decreto do Executivo, pode sofrer sérios prejuízos ao ficar sem produzir energia.

(...)

Pode até perder sua outorga, sem que para isto tenha dado causa. Uma emenda à MP foi a saída encontrada, só que com custo adicional de R$ 2,1 bilhões para os consumidores, que pode ser um pouco menos se for considerada a substituição eventual por usinas mais caras. Uma curiosidade: por que a MP não propõe o uso do preço internacional, a exemplo do que foi sugerido para a Angra 3? Porque tal preço varia entre US$ 3/MMBTU e US$ 5/MMBTU, pouco para as pretensões.

O terceiro tema mostra com perfeição a vulnerabilidade da infraestrutura regulatória do setor energético, como se as atribuições pudessem ser modificadas de acordo com a direção do vento. Em meados dos anos 2000, a Eletrobras, por meio de sua subsidiária no Estado do Amazonas, decidiu construir uma termelétrica a gás natural. Ótimo. O custo da usina e do gás seriam bancados pela Conta de Consumo de Combustíveis, um encargo que faz os consumidores de todo o Brasil pagarem por mais uma fonte de ineficiência estatal, a mãe da insegurança jurídica. Foi assinado, então, um contrato com a Petrobras, que utilizaria o gasoduto Urucu-Coari-Manaus para fornecer o combustível.

Sucede que a usina construída, por ser bem menor que o previsto, não consegue utilizar todo gás contratado. Como a legislação em vigor só permite (por óbvio) que o consumidor pague pelo combustível efetivamente utilizado, surgiu daí uma disputa (entre as duas estatais e a Aneel) que já dura 5 anos. A Aneel, corretamente, não aceita o repasse para as tarifas da parte (R$ 3 bilhões) não utilizada do gasoduto. Qual foi a saída encontrada? Claro, uma nova Emenda à MP 814, autorizando o repasse dos custos para os consumidores, mas com requintes de crueldades: a Aneel foi retirada do circuito, sendo substituída pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Ganha um doce quem adivinhar o porquê. Mais: a ANP é autorizada a estudar o aumento do preço do gás, que é outra demanda da Petrobras há um bom tempo.

A "bondade" do parlamento não para por aí. A MP foi aproveitada para simplificar, mas ao mesmo tempo aumentar a faixa de usuários alcançados pela tarifa social. Se for aprovada tal como o texto original do relator, o consumo de até 80 kWh fica isento do pagamento da conta de luz. Um detalhe: como o consumo médio no Brasil é de 150 kWh, mais da metade disso utilizará energia sem qualquer pagamento. O custo da "bondade" pode chegar a R$ 1,5 bilhão. É verdade que a crise pode ter empurrado uma grande quantidade de pessoas para a pobreza absoluta, mas não é dessa forma que o problema é resolvido. Estimular o uso eficiente da energia sai muito mais barato do que a emenda e tem efeitos permanentes. Porém, nossas vicissitudes tornam bem mais fácil plantar mais um jabuti.

O ponto máximo da criatividade, combinado com o ápice do desvio de finalidade, consiste na criação do Dutogas (sic), um fundo para a expansão da rede de gasodutos. Apesar de todas as mazelas, a regulação do segmento do gás natural não contemplava um encargo, o que é agora inaugurado, e com mais custos, lógico. A propósito, além do aumento de, no mínimo, 6% nas tarifas, mais os 15% já previstos para este ano, o desvio de finalidade é outra marca da nova MP. Lá tem outras pérolas, como em toda a Medida, que emudeceu sobre a privatização da Eletrobras. Em conclusão: pelo Dutogas foi-se uma boa ideia e fluiu o mau gosto do vale tudo e da elevação dos custos. E com um grave precedente para questionamentos futuros por quem tem baixado os preços nos leilões. Bastará enfeitar a árvore com mais um jabuti.

 

Edvaldo Santana é presidente da Abrace e ex-diretor da Aneel