Correio braziliense, n. 20178, 19/08/2018. Política, p. 4

 

A urna das desigualdades

Alessandra Azevedo e Bruno Santa Rita

19/08/2018

 

 

ELEIÇÕES 2018 » O próximo presidente terá um trabalho urgente que, até hoje, nenhum ocupante do Planalto conseguiu fazer por completo: acabar com a enorme diferença de rendimento entre os mais pobres e os mais ricos no país. Confira o que cada pretende

Com R$ 5 no bolso, uma pessoa pode optar por pegar um ônibus, comprar um litro de leite e alguns pães ou, talvez, um quilo de feijão — se não tiver alguma conta para pagar. Para 14,83 milhões de brasileiros, isso não é uma escolha hipotética. No país, 7,2% da população têm menos que isso para viver por dia: R$ 4,53, pelos cálculos feitos este ano pela LCA Consultores, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos a 2017. Em outras palavras, seria possível ocupar quatro cidades como Brasília apenas com a parcela extremamente pobre da população, que precisa escolher diariamente entre comer um pão ou pegar um ônibus, e, muitas vezes, não consegue fazer nenhum dos dois.

O percentual que recebe até R$ 136 por mês — linha de corte adotada pelo Banco Mundial para definir a extrema pobreza — aumentou na comparação feita com 2016, quando 6,5% dos brasileiros estavam nessa situação, segundo o estudo da LCA. O cálculo usado considera todas as fontes de renda: trabalho, previdência, pensão, programas sociais, aluguéis e outras, ressalta o economista Cosmo Donato, que participou do levantamento, feito há cerca de três meses. “De lá para cá, a conjuntura piorou”, conta.

Quem vive o drama no dia a dia sabe bem disso. Poucos meses atrás, Kátia Maria Vitorina da Silva, de 32 anos, por exemplo, costumava juntar R$ 100 por semana catando lixo. A moradora da Estrutural, um dos bairros mais pobres do Distrito Federal, além de continuar na informalidade, agora não consegue mais que R$ 25 semanais, o que rende um total de R$ 100 por mês. Com a amiga Ilaney Ribeiro de Almeida, 46, também catadora de lixo e que tem renda similar, elas sustentam quatro crianças pequenas em um barraco no bairro. “A gente gasta nosso dinheiro com comida. Depois, se vira com o resto”, explica Ilaney.

Reajuste diferente

Ao mesmo tempo em que elas se desdobram para garantir o sustento das crianças, os 10% mais ricos da população abocanham 43,4% do rendimento total dos brasileiros, segundo o IBGE. Já os 10% mais pobres ficam com apenas 0,8% dos R$ 255 bilhões que a população inteira do país arrecadou em 2016. Um exemplo recente e sintomático dessa relação desigual é o reajuste de 16,38% que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovaram no início do mês para os próprios salários, que já são os mais altos do funcionalismo público brasileiro, de R$ 33,7 mil. Ano que vem, eles receberão R$ 39 mil, fora os auxílios e outras benesses. O salário-mínimo — aspiração de metade dos brasileiros, que vive com menos do que isso por mês, segundo o IBGE —, só será reajustado em 4,6% em 2019. Dos atuais R$ 954, passará a ser de R$ 998.

A explicação para o baixo aumento do salário-mínimo é o ajuste fiscal necessário para superar a crise, a mesma usada para boa parte das medidas de austeridade adotadas nos últimos anos. O problema é que, mesmo na recessão, são os mais pobres que sofrem mais. No ano passado, a renda média recuou para todos os grupos, mas, na base da pirâmide, as perdas foram piores. Enquanto os 5% mais pobres da população tiveram rendimento médio real de R$ 40 por mês em 2017 — o que configura uma queda de 18% em relação ao ano anterior (R$ 49), — a parcela 1% mais rica perdeu apenas 2,3% do rendimento médio mensal — que passou de R$ 15,9 mil para R$ 15,5 mil.

Distância maior

Ao cruzar informações do IBGE e da Receita Federal, o economista Adriano Pitoli, sócio da Tendências Consultoria, concluiu que a desigualdade de renda no Brasil é muito maior do que aparece nos dados convencionais. Isso porque os mais ricos costumam declarar rendimentos menores do que os reais nas pesquisas do instituto. Assim, famílias da classe A — que recebem mais de R$ 17.795 por mês  — são responsáveis por 37,1% da massa total de renda do país. Já as classes D e E, com rendimentos de até R$ 2.370, ficam com 14,7%.

A situação piorou nos últimos três anos, segundo Pitoli, devido à crise econômica, que afetou principalmente as famílias mais pobres. “Uma razão direta para isso é que muita gente ficou desempregada e ganhou um ‘passaporte’ para fazer parte das classes D e E”, afirma. Além disso, a recessão castigou mais os setores ligados ao consumo, como comércio e serviços, que puxaram o crescimento da economia entre 2010 e 2014, quando a desigualdade diminuiu. Essas áreas costumam empregar trabalhadores de menor qualificação e que, consequentemente, têm menor renda. “Ou seja, a crise foi pior justamente para quem costuma receber menos, o que explica boa parte da piora na desigualdade de renda”, aponta o economista.

Desde 2017, quando o país começou a se recuperar, outro problema veio à tona: o primeiro grupo que consegue sair da crise é o da classe A, enquanto os mais pobres continuam sem melhoras. Isso porque, em média, um em cada três chefes de domicílio que estão no topo da pirâmide são empregadores, desde grande empresários a donos de pequenas empresas. Durante a recessão, eles viram o lucro, responsável pelo rendimento deles, cair muito. Na recuperação, antes de pensarem em recontratar funcionários ou ajustar salários, os empresários procuram sair do prejuízo e voltar para o nível normal de ganhos.

Frase

"A crise foi pior justamente para quem costuma receber menos, o que explica boa parte da piora na desigualdade de renda”

Adriano Pitoli, economista

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Políticas específicas

19/08/2018

 

 

Embora o Brasil tenha passado por uma recessão econômica que aumentou a distância entre ricos e pobres, esse fosso não foi criado nos últimos anos. O problema do país é estrutural, e não será resolvido quando a crise passar, a menos que o país tome o rumo de um desenvolvimento mais sustentável. Prova disso é que a leve recuperação da economia, com crescimento de 1% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2017, não foi suficiente para reverter a situação. “O buraco é um pouco mais embaixo”, aponta o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

Medidas como a expansão da política monetária adotada pelo Banco Central ajudam a atividade econômica a voltar a crescer e o país a gerar empregos, mas não são pensadas especificamente para incluir os mais pobres na economia, afirma Donato. “Estamos falando de pessoas que não se inserem muito bem nesse contexto. São as que têm acesso mais difícil ao mercado de trabalho, com menor capacitação, e que não serão beneficiadas em um primeiro momento. É uma situação bem mais difícil de ser combatida”, explica Donato.

Para o economista da LCA, é preciso pensar em políticas sociais específicas para o grupo menos favorecido. “No Brasil, isso ainda é algo muito incipiente. Há algumas políticas, mas não suficientes para tirar esse grande contingente de pessoas da pobreza. É preciso mais políticas, voltadas especificamente para esse grupo que tem mais dificuldade, inclusive, quando o país está em crescimento”, avalia.

Dinheiro para comida

No Brasil, em 2017, 13,7% dos domicílios recebiam dinheiro do Bolsa Família. Uma delas era a dona de casa Eliane dos Santos, de 24 anos, que conta com o programa para sustentar os três filhos pequenos: Miguel, Maria Eduarda e Júlia. O mais novo é Miguel, que tem apenas 11 meses. Com esse dinheiro, a prioridade é sempre comprar o mais básico: comida. “A gente se vira com o que a gente tem. Se der para pagar conta, paga. Mas comida vem primeiro”, conta.

Por isso, um dos pontos importantes para resolver o problema da extrema pobreza no país é a manutenção desse tipo de política, defende Donato. “Não simplesmente porque está dando dinheiro para as famílias, porque isso não necessariamente tira da situação de extrema pobreza, mas por impor que os pais coloquem os filhos na escola”, avalia. “Isso tem efeitos muito benéficos de longo prazo, porque só se rompe com o ciclo da pobreza quando se dão oportunidades. Começa com a educação básica.” (AA e BSR*)