Correio braziliense, n. 20178, 19/08/2018. Política, p. 5

 

Um longo caminho a percorrer

Alessandra Azevedo, Bruno Santa Rita e Marília Sena

19/08/2018

 

 

Mesmo durante os anos de crescimento econômico mais expressivo, os governantes brasileiros nem sempre se propuseram a tomar decisões consideradas essenciais para pôr fim ao gigante degrau que existe entre os mais ricos e os mais pobres. A dúvida, agora, é se o presidente eleito em 2018 adotará políticas que podem ser impopulares, e que só terão efeitos de longo prazo, em detrimento de soluções imediatas ou demagógicas. Resolver a situação dos milhões de brasileiros que não têm condições dignas é uma das demandas mais urgentes do eleitorado, mas não costuma ser prioridade dos governantes.

Oferecer sugestões imediatistas não resolve o problema da desigualdade de renda, concordam os especialistas consultados pelo Correio. Para o economista Marcelo Neri, diretor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Social, o maior desafio do Brasil é conciliar o lado econômico com o social — fato que é facilmente observado nos discursos políticos, que costumam se concentrar em um desses lados, como se fossem incompatíveis. Nesse sentido, o erro do país, na opinião de Neri, foi fazer uma estratégica social descolada da econômica. “A produtividade não aumentou, e a população vive mais, mas não teve reforma da Previdência. Tem que trabalhar os dois lados da moeda”, explica.

Além do investimento nos alicerces da sociedade, como saúde pública e educação, o governo também terá que se comprometer com as reformas tributárias e da Previdência, afirmam os especialistas. Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Luis Henrique Paiva, ex-secretário do Bolsa Família, os discursos de candidatos que dizem querer combater a desigualdade social, mas não se comprometem em fazer reformas básicas, tendem a ser demagógicos. “Não dá para ficar prometendo que o país vai crescer e resolver os problemas de renda, se não adotar um modelo que indique que o Estado tem condição de seguir equilibrado”, explica.

Paiva lembra que qualquer medida que venha a ser adotada dependerá da possibilidade orçamentária do governo, atualmente engessada pelos gastos obrigatórios. “Não vejo condição do próximo presidente tocar qualquer agenda se não der uma amostra de que a situação fiscal estará menos pressionada”, diz o especialista. Um sinal disso seria a aprovação da reforma da Previdência, que, embora não dê grandes resultados a curto prazo, “abre espaço para pensar no futuro”. Hoje, os gastos com benefícios previdenciários ocupam 57% do orçamento primário do país. “Se tem uma despesa que é muito alta e não contribui para distribuir renda é a despesa previdenciária”, diz Paiva.

Já a reforma tributária é necessária para que os mais pobres sejam proporcionalmente menos taxados que os mais ricos, ao contrário do que acontece hoje. O Brasil tem um sistema regressivo: a alíquota diminui quanto maiores os valores tributados. “Para resolver o problema da concentração de renda, isso precisa mudar. É uma clara questão da equidade, de onerar menos as famílias mais pobres. O consumo de bens essenciais pesa muito mais no orçamento doméstico desse grupo”, lembra o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

Continuidade

Tanto a reforma tributária quanto a da Previdência são necessárias para normalizar a economia, defende o professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB) José Matias-Pereira. Mas lembra que “é coisa para dois ou três governos resolverem, porque precisa ter continuidade”. Como em todos os outros setores importantes, como educação e saúde, um dos grandes obstáculos na adoção das medidas necessárias pelos governantes é a necessidade que muitos veem de deixar um “legado”.

Adriano Pitoli, da Tendências, defende que é preciso manter a reforma trabalhista. Alguns candidatos afirmam que revogarão a medida, aprovada no ano passado pelo Congresso Nacional. A pesquisadora do Centro de estudos da Metrópole e professora da Universidade de São Paulo (USP) Renata Bichir, considera a reforma um dos vários fatores que aumentam a desigualdade no país. “É um desincentivo para a formalização do trabalho”, diz. “A terceirização e as novas regras para trabalho jogam a massa salarial para baixo. Se a massa salarial não sobe, isso contribui para a desigualdade”, explica. Para ela, a valorização real do salário-mínimo e o aumento da formalização do trabalho são pontos que precisam ser debatidos para que o país avance.

Frase

"Para resolver o problema da concentração de renda, isso precisa mudar. É uma clara questão da equidade, de onerar menos as famílias mais pobres. O consumo de bens essenciais pesa muito mais no orçamento doméstico desse grupo”

Cosmo Donato, economista

 

O que eles dizem

Álvaro Dias (Podemos)

» Hoje, mais de 52 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza. O Estado não pode se omitir. É preciso investir em políticas assistenciais, não só para minorar os problemas, mas também para inserir as pessoas no ciclo produtivo. O programa Bolsa-Família deve ser mantido; porém, aprimorado com a adoção de medidas para estimular o desenvolvimento pessoal que garanta uma “porta de saída” efetiva na forma de qualificação profissional e empreendedorismo. É necessário promover a reformulação e a integração de todos os benefícios não contributivos (aposentadoria rural, BPC e os programas de assistência social Bolsa Família e Salário-Família) em um programa consolidado que use o Bolsa Família como modelo. É necessário refundar o Estado a partir da recuperação do seu papel como agente de desenvolvimento econômico e social. O país necessita de um Estado mais eficiente, ágil e mais barato, que acabe com privilégios e combata a corrupção, contribuindo para o aumento dos recursos disponíveis pelo governo para aplicação nas áreas fundamentais. A inclusão econômica deve combater a miséria e criar condições para que todos possam participar da produção e do consumo. A desconcentração de renda decorrerá também da geração de empregos qualificados e do investimento em educação infantil e básica.

 

Geraldo Alckmin (PSDB)

» O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Aqueles que estão no topo da pirâmide, ou seja, os 1% mais ricos da população, detêm cerca de um quarto do total de renda no país. E o pior é que esse quadro não apresentou alterações significantes nos últimos 10 anos. É o resultado de um Estado que gasta muito e mal, além de tributar os pobres mais do que os ricos. Apesar de gastarmos muito com educação (cerca de 6% do PIB), a maioria do gasto vai para o ensino superior, quando o foco deveria ser educação básica. Além disso, gastamos muito, mas mal: 92% dos brasileiros de 15 a 64 anos são analfabetos funcionais; a evasão escolar no ciclo médio é de 40%. Sem uma educação infantil, fundamental e média de qualidade não há como se ter igualdade na busca de oportunidades de uma vida decente. Também devemos aumentar o grau de formalização do trabalho e impulsionar a inclusão produtiva: 46% dos trabalhadores no Brasil são informais. Devemos aumentar os recursos destinados aos mais pobres e aos excluídos. Finalmente, devemos revisar o nosso sistema tributário para torná-lo socialmente mais justo. Enquanto os ricos são relativamente pouco taxados, os pobres são sobretaxados com impostos indiretos exorbitantes.

 

Guilherme Boulos (PSol)

» Uma agenda de combate à desigualdade e à concentração de renda no Brasil passa de forma mais imediata pela justiça tributária. Defendemos uma Reforma Tributária progressiva, que se concentre na elevação da tributação sobre renda, patrimônio, lucros e dividendos. Temos que tributar mais renda e patrimônio para criar condições para a redução gradual da tributação sobre consumo e produção. Vamos aplicar o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), um tributo já previsto na Constituição Brasileira. Também, criar uma faixa de Imposto de Renda, passando de 27,5% para 35% de alíquota. Finalmente, vamos voltar a tributar lucro e dividendo, algo que parou de ser cobrado durante o governo FHC. Vamos colocar um fim às desonerações fiscais, a “bolsa empresário”. Também defendemos a redução dos juros e regulação do fluxo de capitais. Combater a desigualdade também passa pela universalização dos serviços de saúde e educação, para que os cidadãos não precisem gastar a maior parte de seus salários na garantia de atendimento médico e em escolas e universidades particulares. Finalmente, apostamos pela ampliação de programas de transferência direta de renda, como o Bolsa Família, e de financiamento popular de moradia.

 

Henrique Meirelles (MDB)

» O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Em uma relação de mais de 150 países para os quais existem dados confiáveis, o Brasil ocupa a 10ª posição. Esse elevado nível de desigualdade está relacionado à desigualdade ao acesso à educação de qualidade, principalmente na infância. Como a qualidade das creches, da pré-escola, do ensino fundamental público é menor que das escolas privadas e as crianças de famílias pobres não têm recursos para colocar seus filhos nas escolas privadas, minha proposta é criar um programa similar ao ProUni, que concede renúncia fiscal para as universidades privadas que dão bolsas de estudo para jovens de famílias pobres, para as creches e pré-escola. As creches e pré-escolas privadas teriam um benefício fiscal para cada bolsa concedida a uma criança de família que estiver recebendo transferência do Bolsa Família. Com isto, pretende-se quebrar este circulo vicioso de pobreza e desigualdade.

 

João Amoêdo (Novo)

» Queremos um Brasil igual em regras para todos. Um país de oportunidades, com educação de qualidade para todos, não de oportunismos. O Estado brasileiro hoje é um grande concentrador de renda. Precisamos cortar privilégios e supersalários da elite do setor público e dos políticos. Queremos ter os mesmos salários e as mesmas regras trabalhistas e previdenciárias para o setor privado e o público. Além de eliminar todo tipo de Bolsa Empresário: fechar brechas, cortar subsídios, equalizar os tratamentos diferenciados.

 

Marina Silva (Rede)

» Apesar de termos avançado desde a redemocratização na distribuição de renda e no acesso a direitos, o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. São mais de 52 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza, com renda domiciliar per capita de US$ 5,5 por mês. Estamos em 79º lugar no ranking de desenvolvimento humano da ONU. Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são fundamentais para atender a situação emergencial das pessoas que se veem impossibilitadas de prover suas necessidades básicas. Estudaremos, ainda, as possibilidades da implantação de programa de renda mínima universal. O Brasil tem base para um grande salto no desenvolvimento social. Possui o Cadastro Único, com informações sobre mais de 20 milhões de famílias, e uma rede de atendimento com mais de 10 mil Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas).

 

Lula (PT)

» Ativar a cidadania e promover a igualdade de direitos e oportunidades passam necessariamente por alterações substanciais na estrutura tributária brasileira, que concentra renda e tira competitividade de nossa economia. O plano de governo trabalha com a perspectiva de zerar a cobrança de Importo de Renda na base da pirâmide, aumentando o número de pessoas isentas, que passará a incluir todos que recebem até cinco salários mínimos. Para recompor a receita, o terceiro governo Lula vai taxar de grandes fortunas, criar um imposto de valor agregado (IVA) e voltar a tributar lucros e dividendos.O desemprego, que está atingindo níveis recordes, também tem um papel importante na concentração de renda. A reforma trabalhista do governo ilegítimo desequilibrou as relações entre capital e trabalho, em favor dos empresários, e precarizou ainda mais o emprego. Por isso, nos primeiros meses de governo, Lula implantará o Plano Emergencial de Empregos como passo inicial para devolver a dignidade a milhões de famílias que tanto sofreram pelo drama do desemprego.

 

Os candidatos Ciro Gomes (PDT) e Jair Bolsonaro (PSL) foram procurados, mas não responderam aos questionamentos até o fechamento da edição. A assessoria de Ciro, que tem respondido a todas as solicitações, não conseguiu cumprir o prazo desta vez, mas se colocou à disposição para as próximas. Bolsonaro, novamente, não justificou a ausência.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O problema gerado pelo teto de gastos

19/08/2018

 

 

A aprovação da reforma da Previdência, além de ter consequências diretas na diminuição da concentração de renda, é um fator visto como importante para flexibilizar o teto de gastos. Enquanto alguns especialistas defendem o fim dessa política, que limita as despesas públicas, outros acreditam que ela ajudará o país a manter a trajetória que levará à diminuição da desigualdade social.

O pesquisador João Hallak, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), está no primeiro grupo. Ele lembra que está demonstrado historicamente que o gasto público tem papel preponderante para reduzir a desigualdade social, seja por meio do provimento de serviços de saúde e educação para toda a população, especialmente a mais necessitada, seja por meio de transferências via programas e benefícios sociais. “Mas também pelo investimento público como indutor do crescimento e da geração de emprego. Assim, a Emenda Constitucional 95, que restringe o gasto público, recentemente aprovada, será um dificultador neste quesito que o próximo governo necessariamente deverá enfrentar”, diz.

A pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e professora da Universidade de São Paulo (USP) Renata Bichir entende que o problema fiscal do Brasil é um empecilho que precisa ser resolvido. Porém, congelar por 20 anos investimentos em áreas como saúde e educação inviabilizam a melhoria de vários problemas sociais. “Isso limita as escolhas de políticas públicas.”

Acabar com o teto de gastos, no entanto, não é a melhor alternativa na visão do economista Cosmo Donato, da LCA Consultores. O ideal, para ele, é a flexibilização até que o governo consiga sanear as contas. “É muito difícil de ser cumprida, ainda mais com recuperação tão lenta da economia, que não tem gerado receita como deveria, e com a questão previdenciária se agravando”, observa.