O globo, n. 30999, 21/06/2018. País, p. 6​

 

Supremo permite que a Polícia Federal faça acordos de delação

Carolina Brígido

​21/06/2018

 

 

Colaborações podem ser negociadas sem Ministério Público; não há proteção sobre eventual denúncia

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem, por oito votos a três, que a Polícia Federal (PF) pode firmar acordo de colaboração premiada sem a anuência da Procuradoria-Geral da República (PGR). No julgamento, a maioria da Corte declarou que a delação não pode conter cláusula impedindo o Ministério Público de denunciar o investigado à Justiça. Os ministros também permitiram à polícia sugerir penas aos investigados nas delações. No entanto, o plenário reafirmou que essas decisões podem ser revisadas pelo juiz ao fim das investigações.

Por exemplo, se o acordo com a PF der ao investigado o direito de ficar apenas em prisão domiciliar, o juiz poderá mudar a punição, ao analisar os crimes praticados e a conduta do réu, no julgamento final do processo. Esse princípio já havia sido fixado pelo plenário do Supremo no ano passado, quando os ministros analisaram a delação dos executivos da JBS, firmada pela PGR. Para o tribunal, esse tipo de cláusula não é uma garantia para o investigado de como a pena será cumprida.

QUEM GANHA E QUEM PERDE

A decisão tomada pelo STF também vale para a Polícia Civil em relação ao Ministério Público, nas investigações locais. O entendimento fortalece o poder de investigação da PF e enfraquece o MP, que tinha a hegemonia sobre os acordos de delação. O Judiciário também sai mais fortalecido no processo, com a fixação da jurisprudência do poder de rever as penas do acordo no julgamento do réu.

Hoje, há duas delações firmadas pela PF aguardando a homologação do STF: a do publicitário Duda Mendonça e a do operador Marcos Valério. Também há o acordo do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci aguardando decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Com o resultado do julgamento, essas delações têm mais chances de ganhar o aval do Judiciário.

A decisão foi tomada em uma ação proposta em 2016 pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Para ele, somente o Ministério Público pode fechar um acordo de delação premiada. Raquel Dodge, atual procuradorageral, ratificou a posição. O argumento é que a polícia não pode assegurar ao delator a diminuição da pena ou perdão judicial, medidas que só podem ser propostas pelo Ministério Público, titular da ação penal. O delator fecharia, assim, um acordo sem garantias de seu cumprimento, uma vez que os termos podem ser ignoradas pelo MP na hora de fazer a denúncia.

O relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, rebateu esse ponto. Para ele, um delegado pode firmar o acordo, já que o Judiciário teria a última palavra sobre a pena de qualquer forma. Concordaram com o relator os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Dias Toffoli concordou, mas ponderou que a polícia não poderia fixar penas nos acordos, e sim sugeri-las ao juiz.

FACHIN FOI VOTO VENCIDO

Rosa Weber e Luiz Fux votaram no sentido de que a polícia precisaria pedir autorização do MP para fechar o acordo de delação. Edson Fachin, o relator da Lava-Jato, foi o único a dizer que a polícia não pode firmar acordo de delação premiada de forma alguma. Para ele, essa atribuição não é dos policiais, e sim uma exclusividade do Ministério Público.

Antes do julgamento, a PGR distribuiu memorial aos ministros do STF para reafirmar sua tese. No documento, Dodge apontou “riscos democráticos essenciais” com uma eventual submissão do Ministério Público e da Justiça ao Executivo — já que a PF é um órgão do governo federal. Por isso, a procuradora-geral defendeu que “o Ministério Público tem titularidade plena para celebrar o acordo de colaboração e garantir sua apreciação judicial”.

Para Dodge, o MP funciona como “filtro contra o desvio do sistema punitivo e seu uso como instrumento de justiça privada”. Ela argumentou que o MP também deve funcionar como “filtro contra a ânsia vingativa, na medida em que pondera a racionalidade do apresentado pelo colaborador com o potencial de resposta penal”. A procuradora-geral sustenta que devem ser evitadas situações de “delações propositalmente mal manejadas para obter a improcedência ou garantir a imunidade do colaborador, ou com diminutas consequências aos agentes inseridos no próprio Poder Executivo”.

Ao fim do julgamento, o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Felix de Paiva, divulgou uma nota comemorando a decisão: “Não haveria por que retirar da Polícia Federal um dos mais importantes instrumentos de investigação, expressamente previsto pelo legislador. Agora não existem mais motivos para haver rusgas entre as instituições nesse sentido. O STF deixou claro: o delegado de polícia celebra o acordo, o Ministério Público opina e o Judiciário decide”.

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Um novo confessionário 

Carolina Brígido

21/06/2018

 

 

Com novos riscos e cálculos a serem feitos, presos agora têm mais opções se decidirem admitir crimes em busca de benefícios

Expiar os pecados por longos anos na prisão ou confessar crimes e abreviar o calvário do cárcere com delação? A segunda opção tornou-se muito mais acessível a investigados a partir da decisão tomada ontem do Supremo, autorizando a Polícia Federal a firmar acordos de delação premiada sem a anuência da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Quando se popularizou, em 2014, com os primeiros acordos na Lava-Jato, a delação premiada era operada quase que exclusivamente pelo Ministério Público. Esse protagonismo tornou o caminho da delação cada vez mais estreito à medida que as investigações avançavam. Com o poder do sim ou do não, o MP passou a fazer uma espécie de disputa entre candidatos a delatores para estimular mais e mais confissões.

A entrada da PF nesse campo, a partir do acordo com o principal operador do mensalão, Marcos Valério, abriu outras perspetivas aos candidatos e acirrou a disputa entre MP e PF pelo controle do instrumento. Em 2012, ainda no julgamento do mensalão, Valério havia tentando fechar um acordo com a PGR. Sem sucesso, conseguiu anos depois com a PF. A polícia, que tem investigações distintas do MP, enxergou nas revelações do delator um caminho para condenar investigados em antigas traficâncias, já esquecidas pelo MP.

O mesmo caminho de Valério seguiu o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. A delação dele, rejeitada pela Lava-Jato, acabou sendo fechada com a PF e aguarda homologação no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). A decisão do STF abriu dois caminhos aos candidatos a delator. Negociar com procuradores continua sendo mais atraente, porque é do MP o papel de oferecer denúncia à Justiça. Se, numa delação, ficar acertada determinada punição, o MP tem condições de incluir essa pena na denúncia. A negociação com a PF não livra o delator de eventuais denúncias do MP, mas pode servir de alento a quem nada conseguiu até então.

Tanto o MP quanto a PF continuam sem ter o poder de garantir a pena imposta a um delator. No fim do processo, é o juiz quem determina a punição dos condenados e determina se o acordo firmado pelo MP ou pela PF pode ser cumprido ou se precisa mudar.

No ano passado, o STF já havia firmado o entendimento que as penas expressas em delações da PGR podem ser revistas pelo juiz no julgamento final do processo, a depender da gravidade do crime e da conduta do réu. Ao reafirmar essa máxima também para delações da polícia, a Corte deixou claro que, independentemente de quem conduzir as delações, a última palavra é do Judiciário.

Portanto, no julgamento de ontem, sai ganhando o Judiciário. Sai ganhando também a polícia, que adquire autonomia formal para acordos sem correr o risco de ter a atuação vetada pelo Judiciário. Perde apenas o MP — que, até ontem, tinha a hegemonia sobre as delações.