O globo, n. 30998, 20/06/2018. País, p. 7​

 

Contra um sistema ‘imoral’ e ‘indigno’, uma proposta de reforma política

20/06/2018

 

 

Barroso defende que corrupção não pode ser ‘nota de pé de página’; ao sugerir alteração no processo eleitoral, afirma que a criação de partidos no Brasil se tornou um ‘business’

Periodicamente, o Congresso Nacional aprova mudanças nas regras eleitorais, em pequenos pacotes, que até agora não tiveram sucesso para promover mudanças estruturais no sistema. Assim, nos últimos anos, as alterações mais profundas da legislação foram produzidas no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), como a proibição das doações empresariais, tema que divide opiniões na sociedade. Ressalvando que é prerrogativa do Legislativo deliberar sobre as regras, o ministro Luís Roberto Barroso apresentou, no seminário E Agora, Brasil?, suas ideias sobre o que acredita ser uma boa reforma política. Ele defende o voto distrital misto, inspirado no modelo alemão, adequado, em sua visão, para corrigir os dois principais problemas do sistema político-eleitoral brasileiro: o enorme custo das campanhas e a falta de representatividade da sociedade no Parlamento.

Antes da sugestão ao debate sobre o modelo eleitoral mais apropriado à realidade brasileira, Barroso fez um diagnóstico do que considera serem questões urgentes a serem resolvidas.

— Precisamos de uma reforma política que barateie o custo das eleições; aumente a representatividade democrática no parlamento; e facilite a governabilidade. Baratear a eleição é mais importante do que pode parecer. Uma eleição para deputado federal, num estado médio da federação, custa entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões. Em quatro anos, o máximo que um parlamentar pode receber legitimamente é R$ 1,1 milhão. A conta não fecha. Custa muito mais do que é possível arrecadar. A corrupção no Brasil tem aí uma primeira causa aritmética — avaliou o ministro, que também citou o impacto negativo que o alto custo das campanhas tem sobre os jovens que pretendem ingressar na política: — O custo proibitivo das eleições também afasta qualquer cidadão comum. Um jovem idealista, preocupado com o interesse público, não tem como começar na vida política sem um patrocinador. Não conseguimos renovar a política se não mudarmos isso.

VOTO NO DISTRITO E EM LISTA

O segundo grande problema, na sua visão, é da baixa representatividade. Para Barroso, ela decorre diretamente do atual sistema eleitoral, que destina os votos para os partidos, levando, muitas vezes, o eleitor a escolher um candidato, mas acabar elegendo outro.

— Temos o voto proporcional em lista aberta. A parte boa é o eleitor votar em quem ele quer, mas isso é ilusório. O eleitor vota em quem ele quer, mas elege quem ele nem sabe. Menos de 10% dos candidatos são eleitos por votação própria. Assim, 90% dos candidatos não sabem por quem foram eleitos. Não há legitimidade que resista a um modelo assim. Essa é das causas do descolamento entre a classe política e sociedade.

Quando o Supremo decidiu barrar o financiamento eleitoral por parte de empresas, a partir das eleições de 2016, Barroso se posicionou a favor da medida. Ele afirma que a questão deve ser decidida pelo Congresso, mas que o modelo existente no Brasil tinha vícios que deturpavam a relação entre financiadores de campanha e os eleitos.

— Uma empresa podia tomar empréstimo no BNDES e financiar o candidato da sua preferência. Usava dinheiro público para defender o candidato de sua preferência. É uma uma indecência política. Outro ponto: a mesma empresa podia apoiar o candidato Aécio, a candidata Dilma, a candidata Marina. Se a mesma empresa está apoiando os três, ela não está exercendo direito político. Ou foi achacada ou está comprando favores depois. Qualquer uma das possibilidades é péssima. O sistema ainda permitia que uma empresa financiasse o candidato e, depois, fosse contratada pelo governo do candidato que ajudou a eleger. O sistema era completamente imoral, e o Supremo fez muito bem em derrubá-lo.

Barroso destrinchou o modelo que considera o melhor para o Brasil, conjugando uma redução do espaço físico onde a campanha é feita, para barateála, e um fortalecimento dos partidos.

— Sou a favor do voto distrital misto, sistema alemão, que é, em última análise, um sistema proporcional. Como ele funciona? Metade das cadeira da Câmara é preenchida pelo voto distrital, ou seja, divide-se o território, e cada parte elege um parlamentar, o que torna a campanha mais barata; a outra metade é eleita pelo voto no partido, que tem uma lista pré-definida. O eleitor tem dois votos: no candidato do distrito e no partido de sua preferência. Nesta segunda parte, sou a favor do sistema de lista flexível. O partido apresenta sua lista, mas se o eleitor quiser, não precisa respeitar a lista, vota em quem quiser — explicou, antes de acrescentar: — Acho que essa fórmula agrada a todos. O PT, que gostava da lista fechada; o PSDB, que gostava do distrital mistro; e também quem prefere o sistema proporcional.

INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DESONESTIDADE

Na sua visão, reformar o sistema político-eleitoral é fundamental para combater a corrupção. Barroso lembrou que o Brasil tem 35 partidos, e outros 30 em processo de formalização. Criar um partido, afirmou, virou um “business”, com legendas artificiais servindo apenas para usufruir do fundo partidário e vender seu tempo de TV a siglas maiores.

— Nosso sistema partidário é a institucionalização da desonestidade. Não é o fenômeno de um governo, é acumulativo. Fazer política no Brasil funciona assim: o agente político relevante indica o dirigente de empresa estatal com metas de desvio de dinheiro. O dirigente da estatal frauda a licitação para contratar a empresa parceira. E a empresa parceira superfatura o contrato para gerar o excedente de caixa, lucro que vai ser distribuído ao agente político e a seu grupo. Isso não é caso isolado — explanou o ministro do STF. — Há muitas pessoas progressistas, engajadas, que acham que a corrupção é uma nota de pé de página na história. Não é. A corrupção generalizada cria uma cultura de desonestidade, um padrão de levar vantagem sobre os outros.

Enquanto pintava o cenário preocupante do definhamento do sistema político-eleitoral brasileiro, o ministro citou uma bem-humorada frase de Millôr Fernandes para descrever a perplexidade geral com a enormidade de escândalos revelados nos últimos anos.

— A situação é tão indigna, que até as pessoas sem nenhuma dignidade já estão ficando indignadas. Foi um pouco isso o que aconteceu no Brasil.

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Previdência e punição para juízes: sem prerrogativas especiais

20/06/2018

 

 

Em um cenário de aperto fiscal — a soma de baixo crescimento econômico e despesas elevadas —, discutir o privilégios a setores do funcionalismo público, inclusive do Judiciário, torna-se ainda mais relevante. Juízes, por exemplo, têm direito a auxílio-moradia, ainda que sejam proprietários de imóveis na cidade onde trabalham — o benefício, um salário indireto, muitas vezes faz com que os vencimentos dos magistrados ultrapassem o teto previsto em lei para os servidores públicos. O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu que os integrantes do Judiciário sejam submetidos às mesmas regras do setor privado em uma eventual reforma da Previdência. Caso queiram um complemento de salário depois da aposentadoria, a solução seria investir em um fundo que arcaria com os pagamentos futuros.

— O Judiciário tem muitos problemas de governança e celeridade e tem que entrar na reforma geral (da Previdência) e, portanto, ter o mesmo teto que vale para o setor privado e capitalizar sua própria previdência complementar. Sou totalmente a favor desse modelo. Vale para o Judiciário e vale para todo mundo. Sou uma pessoa verdadeiramente republicana neste sentido. Acho que o Judiciário não deve ter prerrogativas diferentes das que as outras pessoas têm, salvo aquelas necessárias para exercer bem a função, como vitaliciedade — avalia.

CONTROLE DO JUDICIÁRIO

Possíveis mecanismos de controle e acompanhamento da atuação judicial, especialmente do Supremo, também estiveram no debate. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão independente, tem atribuição de ditar normas e fiscalizar todos os tribunais, exceto o STF. Para Barroso, o problema de fato existe, mas a solução passa pelo “controle social”.

— É a pergunta eterna no mundo do Direito: quem controla os controladores? Portanto, vamos supor que se coloque alguém acima do Supremo para controlá-lo. E quem vai controlar esses aqui? É um problema perene. Sempre que não há controle, há problemas, então o controle acaba tendo que ser feito internamente mesmo. Criar um órgão externo que controle o Supremo não resolve o problema, porque passaria a existir o problema de quem controla o órgão externo que controla o Supremo. Alguém, em todos os modelos, tem que ter o direito de errar por último. Não vejo solução que não seja o controle social. Hoje em dia, tudo que ministro do Supremo faz é objeto de controle estrito.

As punições a juízes que cometem crimes também entraram na pauta. Hoje, a pena mais grave imposta aos magistrados é a aposentadoria compulsória, com pagamento integral de salários. O ministro reconheceu que também há “corrupção, leniência e impunidade” no Judiciário.

— Acho que em caso de condenação criminal (de um magistrado), sobretudo por corrupção, a sanção não deve ser aposentadoria compulsória com proventos. A sanção tinha que ser como é para todo mundo — defendeu Barroso.

O ministro defendeu ainda mudanças em outros setores, o que classificou de “reformas estruturais”. Como exemplos, além da Previdência, ele citou alterações no regime tributário, que considera “complexo demais”, e um “choque de valorização da iniciativa privada”.

— O Brasil precisa de uma virada empírico-pragmática. O que significa o seguinte: se libertar da retórica vazia e verificar o que acontece na experiência real. A gente vive em um país retórico, em que as pessoas acham sem ter procurado. As pessoas são comprometidas com o próprio discurso, não com o que acontece no mundo real — afirmou o ministro, que citou como exemplo a falta de dados sobre presos beneficiados com o indulto de Natal.