O globo, n. 30997, 19/06/2018. País, p. 4​

 

PF indicia Marcello Miller e Joesley

Mateus Coutinho

19/06/2018

 

 

Para a Polícia Federal, ao menos um integrante do Ministério Público sabia de atuação de ex-procurador

A Polícia Federal indiciou o ex-procurador da República Marcello Miller por corrupção passiva e o empresário Joesley Batista por corrupção ativa no âmbito das tratativas do acordo de delação premiada dos executivos do Grupo JBS com a Procuradoria-Geral da República (PGR) na gestão do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, em 2017. A informação foi antecipada pelo G1.

A PF argumenta que ao menos um integrante da PGR já tinha conhecimento da atuação de Miller — acusado de trabalhar para a JBS enquanto era procurador — desde o começo das negociações, em março do ano passado, e que nenhum procedimento administrativo foi instaurado no período.

Também foram indiciados o ex-diretor jurídico da J&F Francisco de Assis e as advogadas Fernanda Tórtima e Esther Flesch. Não foram indiciados, porém, o ex-diretor da J&F Ricardo Saud e Wesley Batista, que também eram investigados no inquérito. O relatório final da investigação, conduzida pelo delegado Cleyber Malta Lopes e com mais de 300 páginas, foi encaminhado ontem à noite à presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, e ao ministro Edson Fachin, relator do caso.

A investigação foi determinada pela presidente do STF no ano passado após vir à tona uma gravação de Joesley com Ricardo Saud na qual eles falam sobre contatos e favores recebidos de Miller no período de prétratativas do acordo. Diante do episódio, o então procuradorgeral da República, Rodrigo Janot, pediu ao STF a rescisão dos benefícios dos delatores e as prisões deles, que acabaram sendo decretadas por Fachin. Os irmãos Batista foram soltos neste ano e seguem colaborando com as investigações para tentar garantir benefícios. O STF ainda não decidiu sobre o rompimento do acordo deles.

SEM AÇÃO NOS GRAMPOS

Apesar de apontar que há indícios suficientes de corrupção envolvendo a atuação de Miller, o delegado entendeu que não houve orientação do ex-procurador nos grampos feitos por Joesley nos diálogos com o presidente Michel Temer e com o senador Aécio Neves (PSDB), que deram origem à Operação Patmos. Para o delegado, não há indício de que Miller atuou na produção das provas e, por isso, elas devem ser preservadas. Oficialmente, Miller ainda não havia se desligado da PGR no começo das tratativas da J&F com a PGR.

No relatório, o delegado dedica um capítulo específico para os integrantes do Ministério Público Federal (MPF) no episódio e aponta que tanto o diretor jurídico da empresa Francisco de Assis e Silva quanto o promotor Sérgio Bruno, do Grupo de Trabalho da Lava-Jato na gestão Janot “afirmaram que tiveram conhecimento na primeira reunião na PGR, no início de março de 2017, sobre ingresso de Marcello Miller no TRW (Trech Rossi e Watanabe, escritório contratado para a delação dos executivos da J&F) e inclusive que ele passaria atuar nos interesses da JBS”, diz o relatório.

“Somente quando da divulgação do áudio, quase seis meses após a ciência e participação pública naqueles procedimentos é que Marcello Miller passou a ser investigado pelos seus atos”, escreve o delegado, lembrando que não foi instaurado nenhum procedimento administrativo interno durante a gestão Janot e até abril deste ano para apurar a eventual infração de Miller enquanto ainda tinha cargo na PGR.

Os áudios que levaram à instauração do inquérito vieram à tona no prazo final previsto no acordo para os delatores apresentarem as provas. As gravações teriam sido feitas por acidente no aparelho usado nos diálogos de Joesley com Temer e Aécio.

Apesar de citar que membros da PGR tinham conhecimento do envolvimento de Miller, o delegado não faz nenhuma acusação a outros integrantes da equipe de Janot no período, pois não pode investigar servidores do MPF. Ele, contudo, pede que o material do inquérito seja encaminhado à PGR, a quem cabe decidir sobre eventual investigação envolvendo procuradores. Já a investigação envolvendo Miller, que não é mais procurador da República, deverá ser encaminhada ao MPF em primeira instância, que vai analisar o caso e decidir se denuncia ou não o exprocurador.

Por meio de nota, a J&F informou que Joesley Batista e Francisco de Assis “jamais contrataram, ofereceram ou autorizaram que fosse oferecida qualquer vantagem indevida ao senhor Marcello Miller”. “A J&F contratou dois escritórios de advocacia reconhecidos por sua reputação em suas respectivas áreas de atuação: TRW (Trench Rossi Watanabe), na área de compliance e investigação interna, e Tórtima Tavares Borges, na área criminal. Marcello Miller era sócio do TRW, o escritório de advocacia mais renomado no mundo em compliance, não havendo motivos para desconfiar de qualquer irregularidade”, segue o texto, apontando ainda que a empresa está processando o escritório por “má prática profissional” no episódio: “Apesar do minucioso trabalho feito pela Polícia Federal, causa indignação a suspeita por atos que sequer eram de conhecimento ou controle dos colaboradores e cuja responsabilidade deve ser assumida pelos escritórios respectivos”.

FUNÇÃO PÚBLICA “RESIDUAL”

Em nota, a defesa de Miller informou que sua atuação no escritório Trench Rossi e Watanabe foi de caráter privado, “usando apenas seu conhecimento jurídico e sua experiência profissional, sem envolver nenhum aspecto da função pública que ainda exercia” e que ele “exercia a função pública em caráter apenas residual, pois já tinha pedido exoneração e esteve em férias na maior parte do período”.

Segundo a defesa, Miller “nunca autorizou quem quer que fosse a sequer mencionar sua função pública para obter vantagem” e nunca recebeu valor pelas tratativas das quais participou no pré-acordo enquanto ainda estava na PGR.