O globo, n. 31002, 24/06/2018. País, p. 3

 

Letais, prisões matam mais de 4 por dia

Igor Mello

Juliana Castro

24/06/2018

 

 

Levantamento inédito revela que 6.868 pessoas morreram em cadeias espalhadas pelo país entre 2014 e 2017

A Constituição veda a pena de morte no país, mas a distância entre as garantias da lei e a vida real é grande o suficiente para esconder uma rotina: entre 2014 e 2017 pelo menos 6.368 homens e mulheres morreram sob a custódia do Estado, seja por doenças que infestam as penitenciárias, homicídios ou suicídios. Esse quadro repercute diretamente no dia a dia de violência que atinge todas as regiões do país. Nesse período, houve uma média superior a quatro mortes por dia nas prisões brasileiras. As informações são resultado de um levantamento do GLOBO feito via Lei de Acesso à Informação, com solicitações remetidas aos 26 estados e ao Distrito Federal. Desses, 21 enviaram os dados, de forma completa ou parcial. Ao todo, 3.670 (57,6%) casos são classificados como mortes naturais, quase sempre por problemas de saúde. Boa parte da população carcerária atingida é jovem — em 2016, 55% dos detentos tinham até 29 anos, de acordo com informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Outros 1.094 (17,2%) presos foram assassinados, e 266 cometeram suicídio, segundo registros oficiais. Há ainda 472 mortes em todo o Brasil que sequer foram esclarecidas e são classificadas pelas secretarias estaduais como tendo causa indeterminada ou desconhecida. Em 665 casos, os estados não forneceram informação suficiente para a classificação. Nos últimos quatro anos, 250 de cada cem mil detentos brasileiros morreram. No quesito homicídios, por exemplo, a média dentro das penitenciárias supera a dos assassinatos nas ruas (são 43 mortes para cada cem mil contra 30,3). Em uma realidade em que 36% dos encarcerados estão presos provisoriamente, sem sequer serem julgados, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os números revelam um quadro ainda maior. Esse foi o caso de Cláudio Oliveira, que morreu em setembro do ano passado, aos 21 anos, dez meses depois de ser detido na Cadeia Pública Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, sob a acusação de participação de um roubo, sem uso de armas, a um veículo de entrega dos Correios. Ele tinha apenas um rim e seu quadro de saúde piorou logo depois da prisão. Ou de Róger Wirley Corrêa de Oliveira, de 18 anos, que foi vitimado por uma pneumonia três meses depois de ser preso provisoriamente no Presídio Ary Franco, em Água Santa, na Zona Norte do Rio, suspeito de tráfico de drogas (leia essas histórias na página 4). As condições a que os presos brasileiros são submetidos têm sido agravadas pelo crescimento expressivo da população carcerária, avalia Marcelo Naves, assessor da Pastoral Carcerária Nacional. Para ele, caso a política de encarceramento em massa seja mantida, as consequências para a sociedade só vão piorar. — O sistema carcerário é uma bomba-relógio com prazo muito curto para explodir. — diz Naves. O número de mortes em presídios no ano passado cresceu 29% em relação a 2015. Cenários de massacres em janeiro do ano passado, Amazonas e Rio Grande do Norte têm o maior percentual de homicídios entre os estados brasileiros, respectivamente com 68,5% e 55,5% do total de mortes. Já Santa Catarina tem o maior percentual de suicídios (24,6%) nas celas. No total, São Paulo (1.999), com a maior população carcerária, e Rio de Janeiro (853), com a quarta, têm mais mortes nas prisões.

TUBERCULOSE É 28 VEZES MAIS COMUM NA PRISÃO

Rio e São Paulo também têm os maiores percentuais de mortes por causa natural: 90% do total nas prisões paulistas, e 76% nas fluminenses. As condições sanitárias e a falta de assistência médica, principais fatores para mortes atrás das grades, provocam consequências econômicas, sociais e de saúde pública, afirmam autoridades ouvidas pelo GLOBO. — A faixa etária é de pessoas muito novas para morrerem de doenças das quais pessoas de mais idade, aqui fora, normalmente não morrem — diz o coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública no Rio, Marlon Barcellos. Da tuberculose a outras doenças menos graves, como conjuntivite e até mesmo sarna, surtos nas penitenciárias acabam se alastrando também para fora das grades. Isso porque os presos têm contato com seus parentes nas visitas e com agentes penitenciários, ou estão contaminados quando ganham a liberdade. — A minha família inteira, inclusive meus dois filhos pequenos, pegou sarna porque havia um surto no presídio. Meu marido não sabia que tinha a doença. Tivemos o diagnóstico aqui fora — conta a mulher de um preso de 36 anos que cumpre pena por tráfico de drogas no Complexo do Gericinó, na Zona Oeste do Rio. Embora não existam estatísticas oficiais, uma das enfermidades que mais matam é a tuberculose. Dados do Depen revelam a dimensão da epidemia intramuros: 10,5% dos novos casos notificados no Brasil ano passado foram registrados entre a população privada de liberdade. O risco de um preso contrair tuberculose é 28 vezes maior do que na população em geral. — Estávamos na fila para entrar (no Complexo de Gericinó). Na hora da visita, uma das mães foi separada. Um agente disse que ela devia aguardar alguém da direção vir falar com ela. Depois só ouvimos os gritos. Ela recebeu ali a notícia de que o filho morreu de tuberculose — contou a mãe de um jovem de 21 anos, preso acusado de tráfico.

PRESÍDIO NO RIO TEVE 83 MORTES

Ex-diretora do Depen e inspetora do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Valdirene Daufemback diz que, nos presídios vistoriados, é comum ver problemas graves de alimentação, limpeza e ventilação. Os detentos, afirma, vivem “em condições extremas”. Ela critica a classificação das mortes como naturais. — Considerando que as pessoas estão sob custódia do Estado, é difícil falar de morte natural numa população jovem como a que está presa — contesta Valdirene. Dois pontos citados como agravantes para as condições de saúde dos detentos são os problemas na alimentação e a falta de acesso a medicamentos oferecidos gratuitamente no SUS, mesmo em casos de doenças crônicas como diabetes e hipertensão.

— No Presídio Ary Franco, já me pediram para levar qualquer medicamento na validade, mesmo que só houvesse um comprimido na cartela, porque estava faltando tudo. Se o preso se queixa de algo, dão um Tylenol — relata a defensora pública da União Letícia Sjoman. — Já houve época em que os presos do Rio comiam moela todo dia. É comum vir comida azeda. O GLOBO mapeou o número de óbitos em 618 penitenciárias no Brasil. A que mais registrou vítimas foi o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no Complexo de Gericinó. No período de 2014 a 2017, foram 83 presos mortos. É uma cadeia “neutra” — onde não há domínio de uma facção específica — em que ficam mais de 3,5 mil presos do regime semiaberto. O elevado número de detentos associado à rotatividade ajuda, por exemplo, a disseminação de doenças, atesta a Defensoria Pública do Estado. — Sabemos que eles (presos) são, na sua maioria, pobres, negros e das periferias. O atendimento de saúde precário junto com a alimentação em péssimas condições faz com que a imunidade fique baixa. As pessoas definham no sistema carcerário. — afirma Marcelo Naves.