O globo, n. 31038, 30/07/2018. Sociedade, p. 27

 

Malária a doença da floresta

Ana Lucia Azevedo

30/07/2018

 

 

No Google Earth, a Rua Dagoberto Pinder não é nem mero pixel na imensidão do extremo norte do país. Mas a Dagoberto Pinder retrata o Brasil das febres, onde o urbano e o rural se encontram no abandono. Ela fica em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, município que simboliza a explosão de casos de malária no país. Teve aumento de mais de 3.550% em relação a 2016.

Cercada pela Floresta Amazônica, a Dagoberto Pinder é um microcosmo do ambiente onde prolifera a malária. Segundo o Instituto Socioambiental, as ruas não são calçadas, a coleta de lixo é precária e não há fornecimento de água. Em São Gabriel, só 16% dos 44 mil habitantes têm algum tipo de esgoto. E não passam de 14% os com abastecimento de água. No município mais indígena do Brasil (90% dos habitantes são índios), a malária saltou de 50 casos em 2016 para 6.367 este ano. Foi andando por essas ruas que o agente de endemias José Pinheiro Júnior, da Fundação de Vigilância em Saúde do Estado do Amazonas (FVS), contraiu a doença pela última vez. Aos 58 anos, 26 no combate às doenças na Amazônia, ele já contraiu malária 12 vezes:

— Somos os primeiros a chegar a povoados afetados. Trabalhamos na prevenção. Mas nem sempre há repelente ou tempo.

O trabalho de agentes como ele é considerado essencial por especialistas como Cristiano Fernandes da Costa, chefe do departamento de vigilância ambiental da FVS. No estado há um pequeno exército de seis mil agentes comunitários e três mil de endemias:

— Eles são a linha de frente e precisam estar lá a despeito de quem seja o prefeito.

VÍTIMA DO SUCESSO

A malária, segundo Costa, foi vítima do próprio sucesso dos programas de controle e da chegada de doentes em fuga daVenezuela,tragadapelocaossanitário.Adoençafoidada por resolvida e deixou de ser prioridade. Houve desmobilização do controle e nas redes de diagnóstico. A tempestade se formou de vez com a vinda dos venezuelanos doentes. A Amazônia tem 99% dos 194.365 casos registrados em 2017, um aumento de 50,4% em relação a 2016, quando houve o menor número de ocorrências em 37 anos. O pior cenário está no Amazonas. Em 2017, foram 81.302 casos, um aumento 64% em relação a 2016. Segundo Costa, 35 municípios da Região Norte concentraram 80% das ocorrências — 16 deles no Amazonas. E 73% dos casos são da forma grave, causada pelo Plasmodium falciparum, parasita que havia sido eliminadodelá.Aregiãofazfronteira com a Venezuela, onde ele nunca foi controlado. — Falta acesso ao diagnóstico, que é simples e rápido. Na Amazônia, malária é a primeira doença que deve ser cogitada quando alguém tem febre ou mal-estar, mas não é o que acontece —diz Costa. Muitas vezes, ao chegarem à áreaurbanadeSãoGabriel,indígenas e ribeirinhos são picados pelo mosquito anófeles, contraem o parasita e voltam infectados sem saber para suas aldeias. A doença se espalha. Giselle Maria Rachid Viana, do Laboratório de Pesquisas Básicas em Malária do Instituto Evandro Chagas, em Ananindeua (PA), diz que o primeiro desafio é retomar a tendência de redução de casos. O segundo é a reestruturar o atendimento de saúde local. Ela explica que não existe vacina, mas há como interromper a transmissão. O diagnóstico tem que ser feito em 48 horas após os sintomas, e o tratamento começar de imediato. Assim se evitar que o parasita passe a outro mosquito, se a pessoa for picada de novo.

A malária é lembrada pela febre, mas pode deixar marcas por toda a vida. Estudo inédito da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas mostra que crianças acometidas pela doença podem ter perdas cognitivas que levam a dificuldades no aprendizado.

Já se sabia que a enfermidade avançava com o desmatamento, mas uma pesquisa da USP, publicada em maio na “Scientific Reports”, quantificou o avanço. O estudo associou cada quilômetro quadrado de floresta nativa desmatado a 27 casos novos, entre 2009 a 2015. Isso acontece devido à capacidade de o mosquito se adaptar a áreas impactadas pelo homem. (Ana Lucia Azevedo)

Um retrato da negligência com a saúde

> Causa: Parasitas do gênero Plasmodium.

> O que provoca: Calafrios, febre alta, vômitos, dores, aumento do baço e delírios. A forma grave, convulsões e coma. Pode comprometer os rins, o baço e causar anemia grave.

> Número de casos: 194.365 casos em 2017.

> Regiões mais afetadas: 99% dos casos estão nos estados da Amazônia.

> Transmissão: Por meio da picada de mosquitos Anopheles.

> Vacina: Não existe.

> Prevenção: Pela contenção de casos com diagnóstico rápido (48 horas após o aparecimento de sintomas) e tratamento imediato após o diagnóstico. Uso de inseticidas e mosquiteiros nas casas.

> Tratamento: Existem drogas, mas os parasitas têm adquirido resistência, o que exige o desenvolvimento de novos medicamentos.

> Cura: Sim.

> Obstáculos ao controle: Numerosos. Melhoria da rede de diagnóstico. Falta de prioridade nas gestões municipais. Foram identificadas nos municípios mais atingidos condições precárias nas unidades básicas de saúde (pessoal sobrecarregado, falta de equipamentos, materiais e higiene). Desmatamento e ausência de saneamento.