O globo, n. 30995, 17/06/2018. Economia, p. 34

 

Um ‘big brother’ dos gastos com planos de saúde no país

Cristiane Segatto

17/06/2018

 

 

Empresa usa tecnologia e médicos para detectar desperdícios e fraudes

Em um galpão de 4.000 m² que já abrigou uma lavanderia industrial em Barueri, na Região Metropolitana de São Paulo, funciona o maior centro de conexão de dados do mercado da saúde na América Latina. Quando entrega a carteirinha do convênio ao atendente do consultório, do hospital ou do laboratório de análises clínicas em qualquer região do Brasil, o paciente tem grandes chances de disparar as sinapses digitais da Orizon, uma empresa que tudo checa e registra.

A cada dia, 500 mil procedimentos (do hemograma à cirurgia complexa) são autorizados ou negados instantaneamente pelo sistema que conecta grandes corporações: 43 operadoras de planos de saúde, 140 mil prestadores de serviço e 11 mil farmácias que oferecem programas de desconto aos beneficiários de planos de saúde. Transações relacionadas ao atendimento médico de 13 milhões de pessoas trafegam por ali.

A necessidade de fiscalizar os prestadores que criam artimanhas para engordar pagamentos, ou colocam a saúde dos pacientes em risco com procedimentos desnecessários, deu origem a um mercado de auditoria. São empresas que, como a Orizon, prosperam no ramo da desconfiança.

— É como o custo bélico. Se os países estivessem em paz, ele não existiria. Na saúde, o aparato de guerra é construído porque um lado (as operadoras) sabe que o outro (hospitais e demais prestadores) vai ser mais feliz se fizer mais procedimentos e mais caros — diz o engenheiro Mario Martins, presidente da empresa.

 

INTELIGÊNCIA TÁTICA

Em vez de apenas transportar os dados da carteirinha do paciente entre o prestador de serviço e o plano de saúde, o analisador da Orizon é capaz de intervir instantaneamente no fluxo de dados para captar desvios. Por exemplo: um doppler de carótidas serve para avaliar o fluxo em duas artérias carótidas e em duas artérias vertebrais que levam sangue até o cérebro. Tudo num único procedimento. No entanto, há clínicas e hospitais que cobram como se quatro exames tivessem sido realizados.

Criada em parceria com a Bradesco Saúde e a Cassi (a operadora do plano de saúde dos funcionários do Banco do Brasil), a empresa contratou enfermeiros, médicos e farmacêuticos que trabalharam nos departamentos de faturamento dos hospitais. Eles sabem, por exemplo, como os materiais usados em uma cirurgia podem ser lançados numa conta sem que as auditorias consigam detectar inclusões indevidas ou desnecessárias.

— É uma inteligência tática. Esse pessoal sabe quais são os incentivos para que as fraudes e os desperdícios ocorram — comenta Martins.

Em outra frente de trabalho investigativo, é possível identificar que médicos pedem menos exames, os cirurgiões que oferecem os melhores preços e mantêm os pacientes internados por menos tempo e os hospitais que enviam mais pessoas à UTI — mesmo quando esse encaminhamento é questionável. Por razões contratuais, os cruzamentos gerados pela Orizon permanecem em sigilo. A pedido do GLOBO, a empresa concordou em apontar exemplos de desvios, sem mencionar o nome de empresas envolvidas (veja quadro ao lado).

 

‘O SISTEMA É PATERNALISTA’

Os gastos dos planos de saúde com fraudes e desperdícios superaram R$ 22 bilhões em 2015 (19% do total de despesas assistenciais das operadoras), segundo estimativa do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma entidade de pesquisa mantida pelas empresas. E quem paga é o cliente.

— Submeter uma pessoa a um procedimento desnecessário é uma fraude gravíssima. Usar uma agulha de R$ 5 quando outra de R$ 0,50 faz o mesmo efeito não é fraude, mas é um baita desperdício — afirma José Cechin, diretor-executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde).

Para o médico Caio Soares, diretor executivo da multinacional espanhola Advance Medical Group, que presta serviços de segunda opinião médica aos funcionários de empresas como Google, Renault e Nissan, as iniciativas para flagrar desperdícios serão paliativas enquanto os indivíduos não assumirem a responsabilidade pela própria saúde:

— O sistema é paternalista. Delegamos o controle da nossa saúde à operadora ou ao hospital, mas eles estão preocupados com a nossa doença.