O globo, n. 31037, 29/07/2018. Sociedade, p. 57

 

Hanseníase a doença da exclusão

29/07/2018

 

 

De sua casa no Curupaiti, Jacarepaguá, Rita Barbosa, 64 anos, vê persistir o abandono em que prolifera a doença que lhe roubou a saúde. Ela contraiu hanseníase aos 20 anos. Curou-se, mas perdeu a sensibilidade em 60% do corpo. “A doença marcou a minha alma”, diz ela. E continua a marcar a do Brasil, onde voltou a crescer em 2017, ano do último levantamento. O país é o segundo do planeta em número de casos, atrás só da Índia. Em 2017 houve 26.800 casos (número ainda em aberto, segundo o Ministério da Saúde) contra 25.218 em 2016.

— O esgoto corre a céu aberto à volta do Curupaiti. A hanseníase está ligada à higiene. É muito triste ver que continuam a vir doentes, com feridas abertas, ao hospital (Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária, que funciona na antiga colônia), em meio a este cenário — diz ela, que mora numa das cinco vilas onde vivem ex-pacientes e suas famílias.

A carga da doença no Brasil é alta, com 12,94 casos por 100 mil habitantes — a taxa mundial é de 2,9 por 100 mil.

— Proporcionalmente, somos o país mais afetado. Ultrapassa o absurdo uma doença que tem cura há décadas e só prolifera na pobreza extrema não ter sido erradicada, como aconteceu em quase todo o mundo. Com os cortes no SUS e o aumento da pobreza, caminha para piorar —afirma Marco Andrey Cipriani Frade, do Centro de Referência em Dermatologia Sanitária da USP.

A hanseníase concretiza a desigualdade. Os negros (pretos e pardos) são 71,7% dos casos no período de 2012 a 2016, segundo o Ministério da Saúde. E os analfabetos ou com ensino fundamental incompleto, 55% das notificações, quando classificadas por escolaridade. A relação com a pobreza é direta. A doença é transmitida pelo ar, por meio do contato frequente com gotículas da saliva, tosse e espirros. A bactéria, porém, tem baixa capacidade de transmissão. O contato precisa ser frequente, o que acontece em habitações precárias, onde famílias vivem num único cômodo. A aglomeração da misériaéo maior fator de risco, explica Frade. Como cerca de 90% das pessoas são imunes e devido a características da bactéria, a doença só avança onde sobra a pobreza que a favorece.

— A hanseníase mostra o descaso coma população pobre, um ciclo perverso. Ela prolifera porque há pobreza, e este é um obstáculo ao tratamento. Hanseníase remete ao passado, mas no Brasil uma realidade medi eva léo presente —observa Paulo Machado, coordenador do Serviço de Imunologia do hospital da Universidade Federal da Bahia.

 

DEFICIÊNCIA E ESTIGMA

A permanência da hanseníase causa tragédias pessoais, com deficiência física e estigma. E a negligência custa caro, com gastos evitáveis. Um estudo do grupo de Frade mostrou que, de 2002 a 2015, o Brasil gastou R$ 2,95 bilhões com o pagamento de benefícios apessoas com hanseníase. No período foram registrados 512.305 casos novos (sem contar crianças), dos quais 18,5% pediram auxílios ao INSS. Frade salienta que esse gasto poderia ter sido quase integralmente evitado,pois setra tadeu ma doença curável, mas que, detectada em estágio avançado, deixa sequelas incapacitantes:

— Quando a doença está avançada, podemos matar o bacilo e impedira progressão. Mas não podemos levantar uma mão caída e um pé que não anda, porque os nervos foram atingidos.

No Curupaiti vive Margarida de Lima e Silva, de 86 anos, há 43 lá. Ela chegou quando a internação era compulsória, e a separação do mundo exterior, para sempre —o Brasil isolou os doentes por 58 anos, mesmo após haver cura. Ela mora num pavilhão onde estão nove mulheres, idosas e exinternas, curadas há anos, mas sem ter para onde ir. Incapacitada pela perda dos dedos das mãos e danos nos nervos periféricos, Margarida, obrigada a se separar dos oito filhos, não viu outra opção anão ser continuar na ex-colônia.

Frade destaca que a detecção em estágio avançado continua a ocorrer por falta de capacitação de profissionais de saúde para o diagnóstico precoce. A capacitação do atendimento primário está na causa ena solução para o contro leda hanseníase, explica ele. Como os métodos são ruins, a doença pode passar anos sem diagnóstico.

O chefe do Laboratório de Hanseníase do Instituto Oswaldo Cruz, Milton Ozório Moraes, cita o caso de uma senhora com necrose nos membros que, quando chegou à Fiocruz, já tinha passado por 20 instituições. A Fiocruz recebe os casos mais difíceis no Rio e, segundo Moraes, há pessoas que esperaram oito anos até o diagnóstico correto, com danos irreversíveis. Os doentes chegam de bairros e municípios com bolsões de pobreza, como Queimados e Duque de Caxias. Sem tratamento, passam mais tempo podendo transmitir a doença. A terapia é eficiente, mas não recupera danos neurológicos e a perda de membros.

 

REINSERÇÃO SOCIAL

Principal autora da pesquisa “Estudo epidemiológico da hanseníase no Brasil: reflexão sobre as metas de eliminação”, Mara Dayanne Ribeiro, da Universidade Federal do Ceará, diz que, enquanto a desigualdade e a desinformação de profissionais de saúde forem elevadas, a doença persistirá.

— Além do enorme preconceito motivado pela ignorância, as pessoas com hanseníase enfrentam dificuldades de reinserção na sociedade devido a deficiências físicas que, quase sempre, poderiam ter sido evitadas — frisa Artur Custódio, coordenador nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).

Rita Barbosa integra o Morhan e ajuda pessoas com a doença a se reinserirem na sociedade. Uma de suas maiores preocupações é o jovem Tiago Rodrigues. Aos 21 anos, ele foi diagnosticado com uma forma grave, difícil de tratar.

— Queremos conseguir um emprego para ele. Quando te dão uma chance, você se agarra a ela e segue em frente — diz ela.