O globo, n. 31039, 31/07/2018. Economia, p. 15

 

Agência recua

Luciana Casemiro

Marcello Corrêa

31/07/2018

 

 

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) revogou ontem a resolução que alterava regras de coparticipação e franquia nos planos de saúde. A medida havia sido publicada em junho e previa um limite de cobrança de até 40% do valor dos procedimentos, podendo chegar a 60% em casos de planos empresariais. A decisão foi tomada em reunião de diretores, que admitiram que a norma não foi bem recebida pela sociedade. O órgão promoverá audiências públicas para discutir o tema.

Na prática, nada muda para os consumidores, porque a regra ainda não estava em vigor. A Resolução Normativa (RN) 433 só começaria a valer em dezembro, e, além disso, estava suspensa por uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), após a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionar a competência da ANS para editar a medida. Hoje, 52% dos 47 milhões de contratos da planos de saúde preveem franquia ou coparticipação.

A revogação da medida foi proposta pelo diretor de Desenvolvimento Setorial da ANS, Rodrigo Aguiar. Ele ponderou que o objetivo da norma era “ampliar as proteções ao consumidor e promover maior bem-estar na sociedade”, mas admitiu uma “desconexão” entre os objetivos do órgão e a recepção da sociedade. Há duas semanas, no entanto, Aguiar disse, em entrevista ao GLOBO, que aANS não reveriaa decisão, amenos que houvesse determinação da Justiça. E afirmou que a agência reguladora não era um órgão de defesa do consumidor.

—A ANS deve, portanto, ser sensível à apreensão que se instalou na sociedade — disse Aguiar, ao ler seu voto, durante a reunião da diretoria.

Em nota, a ANS acrescentou que “se reunirá com as principais instituições públicas que se manifestaram sobre a matéria”.

SAÍDA INTERMEDIÁRIA

Para o presidente da OAB Nacional, Claudio Lamachia, a decisão da ANS é uma “vitória da sociedade”:

— A decisão demonstra que a agência percebeu que esse é um assunto que precisa ser mais debatido, e que a sociedade está atenta.

A advogada do escritório Mattos Filho Ana Candida, especialista em regulação da saúde, considera que a norma poderia trazer benefícios ao setor. Mas destaca a importância do debate:

—(A resolução) funcionaria. Na medida do possível, precisamos ter planos que atendam a mais variada gama de consumidores. Não sei dizer se o produto seria benéfico para todos. A ANS poderia, por outros mecanismos, controlar abusos.

Para Rafael Robba, advogado especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva Advogados, a revogação não tira o tema da agenda:

— Revogar essa resolução não retira o assunto da agenda da ANS. É importante que a sociedade, e os órgãos de defesa do consumidor acompanhem e participem dos debates para que uma nova regulamentação não traga situações abusivas.

Embora não haja regulamentação específica sobre limites de cobrança de coparticipação e franquia, uma resolução da ANS de 2009 orienta que percentuais superiores a 30% configuram restrição excessiva ao uso do serviço. Na avaliação de Flávia Martins Azevedo, sócia da área trabalhista do Veirano Advogados, a expectativa é que seja criada uma regra intermediária:

— Talvez o caminho seja algo no meio, próximo da realidade praticada (de 30%).

A advogada Maria Stella Gregori, ex-diretora da ANS, citou a importância do debate:

— Será muito importante que revisitem o tema levando em consideração as contribuições de todos, especialmente dos órgãos de defesa do consumidor.

Para Ana Carolina Navarrete, pesquisadora em Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a ANS está diante de uma crise de legitimidade:

— Ela percebeu que, se continuar normatizando para beneficiar apenas os interesses das empresas, sua razão de ser se esgota.

A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) afirmou que continuará a estudara RN 433, por entender que a norma trazia benefícios aos usuários, que poderão ser incorporados no desenho de um novo regulamento.

Em nota, a FenaSaúde, que representa as seguradoras, disse que a reabertura do debate é uma oportunidade de discutir ações “que promovam maior acesso da população aos planos de saúde e reduzam despesas das mensalidades para as famílias e empresas”.

Entenda como ficam as regras dos contratos

> Franquia

O sistema é similar ao seguro de um carro, quando há um limite de custo pelo qual o cliente se responsabiliza pelo pagamento. Neste caso, há duas formas de aplicação: o plano não se responsabiliza pelas despesas até que seja atingido o limite estipulado no contrato ou limita o acesso, fixando o valor da franquia por cada procedimento.

> Coparticipação

É o valor pago pelo consumidor à operadora, além da mensalidade, quando da realização de um exame, consulta ou outro procedimento.

> Percentuais

Não há limite previsto para cobrança de franquia e coparticipação. No entanto, segundo especialistas em direito do consumidor, um documento da ANS de 2009 (despacho número 611/2009, da Diretoria de Normas e Habilitação dos Produtos) orienta que percentuais acima de 30% podem ser considerados “fator de restrição severa de uso do plano de saúde”. O despacho serve de balizamento às cobranças e recursos à Justiça.

> Isenção obrigatória

A Resolução Normativa 433 listava 250 procedimentos que deveriam ser integralmente arcados pela operadora. Revogada a norma, não há procedimentos com isenção obrigatória. Cada empresa pode fazer sua lista.

> Urgência e emergência

Resolução que regula franquia e coparticipação proíbe uso de ambos os mecanismos “que impeçam ou dificultem o atendimento em situações que caracterizadas como urgência e emergência”. No caso de internações, determina que seja adotado um valor fixo e não um percentual.

CRONOLOGIA: AS IDAS E VINDAS DA DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DE COBRANÇA

28 de junho

A Resolução Normativa (RN) 433, que atualizava as regras de franquia e coparticipação, foi publicada no Diário Oficial. A norma, que entraria em vigor no fim de dezembro, estabelecia teto de 40% para a cobrança por procedimento, podendo chegar a 60% nos planos empresariais.

4 de julho

Vinte e três entidades, entre organizações de saúde e defesa do consumidor, divulgaram uma nota de repúdio à RN 433. Entre as principais críticas, o teto de coparticipação em até 60%, de acordo com o contrato, e a fixação de limites mensais e anuais elevados para o pagamento.

13 de julho

A OAB Nacional entra com uma arguição no Supremo Tribunal Federal (STF) em que questionava a legitimidade da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para editar a RN 433. A instituição defendia que esse tipo de norma deveria ser submetida ao Congresso Nacional.

16 de julho

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, concede à OAB liminar que suspendia a norma. Em sua decisão, a ministra justificou a suspensão da regra da ANS alegando que “pode reequilibrar o quadro de insegurança jurídica deflagrado pelas possíveis limitações desfavoráveis ao consumidor”.

18 de julho

Ao GLOBO, o diretor de Desenvolvimento Setorial da ANS, Rodrigo Aguiar, disse estar “seguro quanto aos critérios utilizados” para definir o percentual de franquia. E que só mudaria a regra se fosse determinado “pelo Judiciário, por exemplo.” Aguiar disse ainda que a ANS não é órgão de defesa do consumidor.

30 de julho

Em reunião da diretoria colegiada da ANS, Rodrigo Aguiar propõe a revogação da norma e reabertura do debate sobre o tema para “captar mais adequadamente os anseios e receios dos usuários do sistema”. A norma foi revogada, e a agência reguladora decidiu abrir uma nova audiência pública.