O globo, n. 31030, 22/07/2018. Artigos, p. 21
Memória da bárbarie
Patrícia de Oliveira
22/07/2018
Conheci meu irmão quando ele estava prestes a deixar o Brasil, aos 21 anos, após sofrer duas tentativas de homicídio. A violência nos separou desde pequenos. Fomos criados por mães diferentes em uma favela do Rio de Janeiro. Mas há 25 anos nos conhecemos e nos reconhecemos em um acontecimento trágico, a Chacina da Candelária. Eu, iniciando a minha militância em direitos humanos; ele, o sobrevivente que teimou em não morrer. Nossa identificação foi imediata: temos gênio forte, não aceitamos injustiças, resistimos para existir.
Meu irmão, Wagner dos Santos, foi a testemunha chave na identificação dos policiais que abriram fogo contra um grupo de mais de 50 crianças no dia 23 de julho de 1993. Ele estava nos arredores da Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, quando um carro com homens armados encostou, matou cinco crianças, feriu um jovem que morreria dias depois, e levou outros três para serem executados a quilômetros dali. Wagner é um dos que foram levados e o único que escapou. Ele levou um tiro no rosto, mas sobreviveu e pôde revelar ao mundo o que aconteceu naquela noite.
Passado pouco mais de um ano, houve uma nova tentativa de calá-lo a tiros. Wagner sobreviveu novamente, mas dessa vez decidiu deixar o país. Não tem nenhum lugar no corpo do meu irmão que não tenha uma marca. As de tiro passaram a acompanhar as de torturas e espancamentos que sofreu por parte de agentes do Estado quando era criança e adolescente no Brasil. Hoje, Wagner mora na Suíça. Suas cicatrizes são lembranças físicas de um passado que nunca vai sair da sua memória.
Na minha militância em direitos humanos, percebi que a história do meu irmão é uma experiência compartilhada por outros jovens negros no Brasil — um país que promove uma política de segurança pública que encarcera e extermina a juventude com efeitos devastadores para toda a sociedade. Alimenta-se assim um ciclo de violência, que parece não ter fim, e nós somos o alvo. Por isso, aprendemos desde cedo que é preciso resistir até mesmo para estar aqui contando essa história.
Meu irmão é um sobrevivente, eu sou uma sobrevivente. A mesma violência que nos separou quando criança acabou por nos unir. Nos encontramos e nos conhecemos para celebrar a vida e lutar por justiça. Aprendemos na dor que as conquistas do povo negro vieram com muita luta. Por isso, não iremos deixar que o dia 23 de julho de 1993 caia no esquecimento. Lembramo-nos dessa história hoje para que ela não se repita: Candelária nunca mais!