O globo, n. 31026, 18/07/2018. Rio, p. 8

 

Fila furada

Carina Bacelar

Selma Schmidt

18/07/2018

 

 

 Recorte capturado

Secretaria tinha aplicativo para agilizar acesso ao Sisreg; pacientes conseguiam consulta a jato

A fila para um procedimento cirúrgico na rede de saúde da prefeitura pode demorar anos, mas nem todos enfrentam os obstáculos do serviço público. Um morador de São Gonçalo, de 70 anos, conseguiu agendar sua consulta préoperatória de catarata, no hospital particular conveniado onde seria operado, para apenas 12 dias depois. O pedido para incluir o paciente chegou por email para uma funcionária do Sistema de Regulação de Vagas de Consultas e Cirurgias (Sisreg) em 8 de junho. E o processo foi a jato: a solicitação e a aprovação da consulta saíram no mesmo dia. Também chama a atenção o fato de o idoso sequer morar na cidade do Rio. Na ficha do paciente, Sonia Capellão, funcionária do Ministério da Saúde que atua como supervisora da central de regulação na Secretaria municipal de Saúde, aparece como a médica solicitante. A norma diz, no entanto, que os procedimentos devem ser pedidos por um médico de uma unidade de atenção básica.

A reportagem teve acesso a uma troca de e-mails entre um homem, que se identifica como colaborador do hospital particular onde o paciente seria operado, e uma funcionária da regulação da prefeitura. “Você poderia ver a possibilidade de incluir esse paciente. Não sei se ele está listado no Sisreg”, pede o homem. Alguns dias depois, chega uma resposta do e-mail da regulação ambulatorial, avisando a data da consulta pré-operatória do morador de São Gonçalo.

O caso atípico desse paciente, revelado inicialmente pelo RJ-TV, da TV Globo, vem à tona num momento em que a fila da saúde está na berlinda. O Ministério Público estadual informou que já instaurou três procedimentos: dois inquéritos e um processo administrativo para apurar eventuais irregularidades no Sisreg. A Defensoria Pública disse que “acompanha a situação da saúde do município”.

À TV Globo, um ex-funcionário da prefeitura revelou que um grupo de servidores do Sisreg era responsável por furar a fila de espera dentro da própria Secretaria municipal de Saúde. Segundo ele, que atuou por dez anos no município e pediu anonimato, pacientes indicados pela prefeitura tinham prioridade. Ele contou que chegavam pedidos de vereadores e do secretário. Havia até um grupo de WhatsApp para tratar das indicações, do qual participavam pessoas ligadas à subsecretária de Saúde, Claudia Lunardi.

Esse ex-funcionário explicou que ficou mais fácil beneficiar pacientes fora da fila após uma mudança de procedimento ocorrida em dezembro de 2017. Desde então, segundo ele, a autorização para consultas, exames e procedimentos oftalmológicos saíram das mãos dos médicos das unidades básicas e passaram para três funcionários a Central de Regulação Ambulatorial. Ontem, por telefone, a secretaria informou às clínicas e aos centros de saúde que as consultas para exames oftalmológicos gerais voltariam a ser agendadas pelos médicos.

ESPERA DESDE OUTUBRO

Enquanto isso, a moradora de Curicica Nádia Mamede, uma aposentada de 53 anos, deve ser finalmente operada hoje de catarata. Mas a espera foi longa. O périplo de Nádia começou em outubro do ano passado, quando ela procurou a clínica da família de seu bairro. A consulta com especialista só foi agendada para 20 de junho, mesmo assim num hospital de Botafogo, a 30 quilômetros de sua casa. Ao ser finalmente atendida, soube que a cirurgia de seu olho esquerdo — muito embaçado por conta dos remédios que toma para artrite reumatoide — seria marcada para quatro dias depois. Em vez disso, a operação foi postergada, sob a alegação de que era preciso esperar a chegada da lente para ser implantada. Ontem, ela recebeu um telefonema informando que a cirurgia acontecerá hoje.

— Vi essas reportagens sobre os “fura-filas". Por isso, é que eu fiquei para trás. Não tenho padrinho político — lamentou.

O GLOBO teve acesso às fichas, no Sisreg, de outros nove pacientes que, ao contrário de Nádia, conseguiagendada. ram marcar suas consultas pré-operatórias em tempo ínfimo, para procedimentos como cirurgias de catarata e plástica reparadora. Dentro desses casos, está o de uma moradora do Leblon de 78 anos, que, como todos os pacientes analisados, tinha grau de urgência classificado como azul, o menos emergencial em uma escala de quatro patamares. Ela, entretanto, conseguiu marcar sua consulta pré-operatória, 11 dias após sua solicitação, no dia 15 de junho. A autorização saiu no dia 18.

— Eu fui encaminhada do posto municipal (da Gávea). Mas eu também tinha uma pessoa que trabalha em outro hospital que ia me incluir, entendeu? Só que nem precisei disso. Fui encaminhada, e logo me chamaram. Eu não vou dizer o nome dessa pessoa, para não prejudicála — afirmou a paciente.

Em outra ficha, de um homem de 58 anos, que mora em Nova Iguaçu, a solicitante também é a funcionária Sonia Capellão. O pedido é autorizado apenas um dia depois, em 28 de junho. A consulta pré-cirúrgica foi agendada para hoje.

Para outra aposentada, de 79 anos, o processo também foi rápido. De acordo com sua ficha, a idosa foi atendida na Clínica da Família Adolfo Ferreira de Carvalho, em Barros Filho, em 3 de julho. No dia seguinte, sua consulta com especialista do Hospital da Lagoa foi aprovada e O atendimento, que precederá uma cirurgia para corrigir um problema na orelha (afecção hipertrópica da pele), foi marcado para 10 de agosto.

— A minha neta é que agilizou tudo. Ela tem muitos contatos — disse a idosa, sem saber informar que contatos seriam esses.

Na ficha da aposentada, constam dois telefones. Um é o da idosa, e o outro, um celular de uma clínica oftalmológica particular em Ipanema.

Já uma moradora de Botafogo de 70 anos conseguiu ainda mais agilidade: o encaminhamento para a cirurgia foi emitido no mesmo dia em que a solicitação para cirurgia catarata entrou no sistema. A consulta, no hospital executante, ficou agendada para apenas sete dias depois.

Para Nelson Nahon, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), não é normal tamanha rapidez num processo de cirurgia. O padrão é de filas longas:

— Eventualmente, pode acontecer, em caso de urgência e emergência. Não é normal conseguir aprovar a solicitação no mesmo dia. Tem uma fila de espera, tem que ver de onde é o paciente, qual é a vaga.

Nahon também destaca que, em geral, é o nome do médico que consta como o solicitante — e não o de uma funcionária da Central de Regulação, como nos casos dos moradores de São Gonçalo e de Nova Iguaçu. O Cremerj se preparava, ontem à tarde, para entrar com uma representação no Ministério Público contra a prefeitura por causa de supostas interferências nas filas de cirurgias.

O promotor Daniel Lima Ribeiro, titular da 3ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Saúde da Capital, investiga, em um dos inquéritos do MP, “ato de improbidade consistente na violação da impessoalidade e na isonomia a partir da gestão do Sisreg”. Busca saber se houve casos de pacientes furando a fila. O órgão está em fase de coleta de informação e pede que denúncias sejam encaminhadas por meio do telefone da Ouvidoria do MP (127).

O segundo inquérito apura a falta de transparência do Sisreg. Está sendo concluído um estudo sobre portais de transparência de outros estados e municípios. Em breve, será encaminhada uma proposta de acordo para a prefeitura, a fim de que seja evitada mais uma ação civil pública. Para isso, o município deverá assumir a obrigação de implantar o seu portal, de modo a permitir que todo cidadão interessado tenha acesso à fila e ao seu lugar nela. Já o processo administrativo fiscaliza questões estruturais quanto à regulação.

SECRETARIA PROMETE SINDICÂNCIA

Diante das denúncias, a Associação de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio divulgou nota repudiando a conduta da prefeitura. “Ao oferecer, a grupos específicos, facilidades não acessíveis ao restante da população e fluxo paralelo de utilização da rede de saúde, o prefeito desrespeita as pessoas que hoje aguardam resposta da rede de saúde e fere os princípios de universalidade e equidade do SUS”, diz a nota. Segundo o presidente da entidade, Moisés Nunes, a justificativa técnica dada para a centralização da marcação de consultas oftalmológicas na Secretaria municipal de Saúde foi a da necessidade de se obedecer a uma ordem, de gravidade e de procura. Ele ressaltou, no entanto, que, a denúncia feita por um ex-funcionário da prefeitura revela o uso político do novo modelo:

— Usar uma justificativa técnica para conceder vantagens políticas é crime.

Na última sexta-feira, a bancada do PSOL conseguiu as assinaturas necessárias para instaurar a CPI do Sisreg. Segundo o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), a celeridade observada nos casos citados pela reportagem “não é comum”:

— A subsecretária de Saúde me disse, no sábado, que havia sete mil na fila da cirurgia de catarata. O que está mais do que claro é muitos devem ter entrado na frente da fila.

Em nota, a Secretaria municipal de Saúde afirmou que vai abrir sindicância para apurar eventuais problemas na regulação. O órgão disse que “repudia e não compactua com a suposta interferência no Sisreg, que é uma plataforma do Ministério da Saúde”.