Título: 18 anos de injúria, agressão e desacato
Autor: Alcântara, Manoela; Tolentino, Lucas
Fonte: Correio Braziliense, 03/05/2012, Cidades, p. 25

Ocorrências registradas em delegacias do DF revelam que o médico acusado de ofender uma bilheteira de um cinema da Asa Norte acumula denúncias desde 1994. Ele foi indiciado e prestará depoimento amanhã O suspeito de discriminação racial contra uma bilheteira de cinema acumula, em 18 anos, outras nove acusações na Polícia Civil do Distrito Federal. Entre as queixas estão injúria discriminatória, desacato, agressão e lesão corporal (leia quadro). O médico Heverton Octacílio de Campos Menezes, 62 anos, recebeu ontem a intimação para depor no caso mais recente, ocorrido no domingo, em um shopping da Asa Norte. Ele foi indiciado por injúria qualificada.

Em entrevista ao Correio, ele negou ter ofendido a atendente Marina Serafim dos Reis, 25 anos. Mas ela e testemunhas reafirmaram aos investigadores que, entre outras coisas, o acusado disse: "Seu lugar não é aqui, lidando com gente. Você deveria estar na África cuidando de orangotangos". Tudo porque a vítima pediu a ele para esperar a vez na fila. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, acompanhará o caso.

Em nenhuma das investigações registradas a partir de 1994, no entanto, o suspeito respondeu a processo na Justiça ou sofreu qualquer sanção — a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do DF não soube explicar o porquê de os inquéritos não terem avançado na esfera judicial. Em 2002, ele teria cometido o mesmo crime de injúria racial. Na ocasião, foi acusado de ofender uma mesária eleitoral, por ela ter dado prioridade a idosos e grávidas na fila para votação. "Isso aqui parece uma republiqueta das bananas e você a representa muito bem, sua negrinha", teria dito, segundo a ocorrência.

A residência do suspeito de injúria tem placas que fazem alertas: "área restrita" e "uso de força mortal"

"Burra" Dois anos depois, Campos Menezes teria agredido uma funcionária. Em depoimento prestado aos investigadores da época, uma empregada da clínica da qual é proprietário teria relatado uma sequência de ofensas contra ela. "Faltavam três linhas em um relatório. Ele a chamou de burra e depois a agrediu puxando-lhe os brincos. Duas funcionárias presenciaram o fato", revela o depoimento. O delegado-chefe da 5ª Delegacia de Polícia (Área Central), Marco Antônio de Almeida, confirmou que todos os inquéritos foram concluídos e encaminhados à Justiça.

A explicação para a impunidade seria a complexidade para comprovar os crimes, segundo o Marco Antônio. "A produção de provas é uma das grandes dificuldades da investigação. Em alguns casos, as testemunhas não comparecem. É difícil", enfatizou o delegado. Porém, ele acredita que, no caso de Marina, a justiça será feita. "Na minha visão, as provas do crime de injúria racial são robustas. Temos vídeos e depoimentos de testemunhas idôneas. Mas ele tem o direito do contraditório e de apresentar a versão dele. A partir daí, só a Justiça pode decidir", completou.

Os investigadores chegaram ao suspeito por meio de esclarecimentos informais de testemunhas e do reconhecimento da vítima, por meio de fotos. Ontem, duas pessoas prestaram depoimento formal, reiterando os xingamentos. O advogado de Campos Menezes entrou em contato com o delegado e enfatizou que o cliente poderia se apresentar ontem mesmo. Mas o delegado Marco Antônio quer ouvir duas testemunhas durante a semana, apurar mais detalhes e escutar o acusado na sexta-feira, às 14h.

Explicação A casa de Campos Menezes, no Setor de Chácaras do Lago Sul, chama a atenção. É toda pintada com as cores da bandeira da França — ele morou naquele país — e tem placas com mensagens incomuns no portão de entrada. Em uma delas, escrita em inglês, é dito que a residência é uma "área restrita" e o "uso de força mortal é autorizado no caso de entrada proibida". O terreno tem cerca elétrica. Há ainda referências à Área 51, nos EUA.

Ao Correio, o médico, psicanalista e conferencista negou as acusações. Mostrou-se disposto a provar a inocência e declarou não se lembrar das outras nove acusações. "Nunca respondi a nenhum processo. Esses casos são todos ficcionais e, obviamente, não tiveram nenhum fundamento", disse (leia entrevista). Ele também se colocou à disposição para prestar qualquer esclarecimento. "Só disse que o atendimento dela era descortês. Não entendo por que isso causou tanta confusão. No dia 1º, voltei ao cinema, fui atendido por ela, sem nenhum problema", completou. Ele mostrou à reportagem o comprovante da sessão, além da nota de um restaurante do shopping.

Marina, no entanto, não se recorda de ter atendido o médico. "Fiquei o dia inteiro fora, não me lembro de ter atendido ele", afirmou.

Colaborou Roberta Abreu

Secreto A base militar restrita no deserto de Nevada, nos Estados Unidos, é conhecida como Área 51. É um local tão secreto que o governo do país só admitiu a sua existência 1994. Suspeita-se que seja um ponto de testes aéreos. Documentários e filmes tratam o local como base para tratar de fenômenos extraterrestres.

Sob investigação Confira as ocorrências abertas contra Heverton Campos Menezes: Ano Acusação 1994 Desacato à autoridade 1995 Lesão corporal 1997 Injúria 1999 Injúria 1999 Injúria 2002 Injúria discriminatória com cunho racial 2004 Agressão física contra uma funcionária 2008 Lesão corporal e injúria 2009 Desacato 2012 Injúria discriminatória com cunho racial

* Fonte: 5ª Delegacia de Polícia (Área Central)

Quatro perguntas para

Heverton Octacílio de Campos Menezes

O que aconteceu na fila do cinema no último domingo? Sou um apaixonado por cinema e fui ao shopping para ver o filme Habemus Papam. Cheguei às 15h, um pouco atrasado. Perguntei à moça se ela poderia me dar um atendimento prioritário. Ela foi ríspida e apenas fiz um comentário de que o atendimento dela era de má qualidade. A partir daí, nasceu esta questão esquisita, que não vejo fundamento. Um excesso de informações e uma greve da verdade. A moça entrou numa série de mal-entendidos, não tenho dúvida sobre isso. Ela foi grosseira comigo, não sei se estava nervosa. Só disse que o atendimento era descortês, foi a palavra que utilizei.

Por que as imagens da segurança interna mostram o senhor correndo pelo shopping? As pessoas ficaram hostis devido ao comportamento da funcionária, uma tendência que poderia levar até ao linchamento. Por isso, resolvi me retirar do lugar. Não correr, mas me retirar dali para manter a segurança, devido à confusão. É uma injustiça, tudo sem fundamento. Essas denúncias têm que ser esclarecidas. Como se trata de discurso sem fundamento, vou neutralizar isso pela tranquilidade que estou agindo.

As testemunhas e a moça alegam que o senhor teria falado para ela voltar para a África e cuidar de orangotangos naquele continente. Isso é verdade? Eu não disse isso, porque não tenho nenhum problema com afrodescendentes. Tenho funcionários de raça negra, respeito todas as etnias. Já viajei um ano pela África, tenho um grande interesse pela cultura africana. Essa questão de cor, etnia, isso não importa e não torna as pessoas desiguais.

Tem outras nove denúncias contra o senhor na delegacia. Em 2002, há um boletim de ocorrência também com ofensas raciais. Aquilo é um engano, nem lembro disso. Esses casos são todos ficcionais e, obviamente, não tiveram nenhum fundamento. Não me recordo disso. Não estou aqui fazendo uma defesa, mas expondo a verdade. Nunca respondi a um processo na Justiça, nunca. Com relação a esse último caso, vou à delegacia prestar esclarecimentos porque faz parte do Estado de direito que eu vá. A afrodescendência da moça jamais foi referida, nem com palavras polticamente corretas, nem com palavras politicamente incorretas.