Correio braziliense, n. 20169, 10/08/2018. Mundo, p. 14

 

Persistência feminista

Jorge Vasconcellos

10/08/2018

 

 

ARGENTINA » Militantes pela legalização do aborto lamentam a derrota do projeto no Senado, por 38 votos a 31, mas firmam a determinação de seguir a campanha. Governo estuda acabar com a prisão para as mulheres que recorrerem ao procedimento

A discussão sobre o aborto na Argentina prosseguirá, mesmo após a decisão de ontem do Senado de rejeitar — por 38 votos a 31, com duas abstenções, em votação encerrada na madrugada — o projeto de lei que previa a legalização do procedimento desde que fosse realizado até a 14ª semana de gestação. Atualmente, ele é permitido em caso de estupro ou de risco para a vida da mãe. O governo anunciou que no próximo dia 21 enviará ao Senado uma proposta de reforma do Código Penal que incluirá o fim da pena de prisão para a mulher que realizar um aborto fora dos limites da legislação. O presidente Mauricio Macri disse que as discussões sobre o tema “vão continuar” e também anunciou o reforço na distribuição gratuita de anticoncepcionais, principalmente no norte do país e na província de Buenos Aires, para lidar com o “problema” da gravidez na adolescência.

O projeto de legalização do aborto, aprovado em junho na Câmara dos Deputados, por 129 votos contra 124, foi rejeitado pelos senadores após mais de 15 horas de sessão e ao fim de cinco meses de intenso e acalorado debate, que extravazou do Congresso e ganhou as ruas. O resultado confirmou as previsões de que dificilmente o projeto passaria no Senado, marcadamente mais conservador.

Passadas poucas horas da votação, a possibilidade de o governo enviar ao Legislativo uma proposta de descriminalização do aborto foi confirmada para a imprensa pelo chefe de Gabinete da Presidência. Marcos Peña frisou que o Executivo aguarda apenas as recomendações de uma comissão de especialistas que está trabalhando no assunto. Na Argentina, o aborto ilegal resultou, de 2007 a 2016, na condenação de 63 pessoas, punidas por diferentes tipos de crimes relacionados ao procedimento.

Na Casa Rosada, após uma reunião do ministério, Macri falou sobre as ações planejadas pelo governo para a prevenção da gravidez na adolescência. “O problema existe, e temos de continuar trabalhando para que todas essas meninas tenham a possibilidade de escolher e planejar suas vidas”, enfatizou.

Macri ponderou que a discussão em torno do aborto, tema que divide prarticamente ao meio a sociedade argentina, mostrou o amadurecimento democrático do país. “Espero que entendamos que esses são debates que começam e continuarão. É claro que continuarão, porque nós, argentinos, estamos amadurecendo em liberdade, estamos entendendo o que significa viver em democracia com plena liberdade. Temos de aprender cada dia mais a ouvir o outro e entender que o outro pode ter outra visão, sem que haja necessidade de ficarmos com raiva uns dos outros.

Vigília

“Que vire lei!” foi o grito de guerra de centenas de militantes feministas que acompanharam ao longo da madrugada a votação do Senado. Após mais de 17 horas em vigília, muitas ainda resistiam nos arredores do Congresso. Dezenas de milhares já tinham ido embora, devido ao frio, à chuva e à certeza cada vez maior de que o resultado seria adverso.

Por volta das 3h de hoje, quando se consumou a derrota do projeto, a raiva explodiu do lado verde, a cor que identifica a luta pela legalização do aborto. “Isso acabou de começar. Não poderão deter a maré feminista que veio para mudar a Argentina”, escreveu no Twitter a deputada Victoria Donda, uma das impulsoras do projeto. “Mais cedo ou mais tarde, será lei.”

Do outro lado da Praça do Congresso, separados por cercas e policiais, os azuis do movimento “pró-vida”, como se autodenominam os opositores do aborto legal, festejavam com fogos de artifício.

Em comunicado, a Anistia Internacional considerou que a decisão do Senado argentino “representa a perda de uma oportunidade histórica para o exercício dos direitos humanos de mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar”.

 

Frases

"Esses debates continuarão, porque nós estamos amadurecendo em liberdade, entendendo o que significa viver em democracia com plena liberdade”

Mauricio Macri,  presidente da Argentina

 

"Isso acabou de começar. Não poderão deter a maré feminista que veio para mudar a Argentina. Mais cedo ou mais tarde, será lei”

Victoria Donda, deputada, uma das patrocinadoras do projeto