Correio braziliense, n. 20166, 07/08/2018. Mundo, p. 12

 

Até o último voto

Jorge Vasconcellos

07/08/2018

 

 

ARGENTINA » Divididos praticamente meio a meio, como a sociedade, os 72 senadores decidem amanhã o destino do projeto que legaliza o aborto, aprovado na Câmara dos Deputados por vantagem mínima, em junho, em sessão que varou a madrugada

A semana começa na Argentina com as atenções voltadas para a histórica votação de amanhã, no Senado, sobre o projeto que legaliza a prática do aborto até a 14ª semana de gestação — atualmente, o procedimento só é autorizado em caso de estupro ou de risco para a saúde da mãe. Como ocorreu em junho, quando a Câmara dos Deputados aprovou a proposta por um placar apertado, a divisão da população em torno do tema se reflete entre os 72 senadores, com vantagem para os opositores da legalização. As últimas projeções indicavam 37 votos contrários ao projeto, 31 a favor, uma ausência, e uma abstenção, além de dois indecisos.

O mapeamento dos votos foi atualizado no fim de semana, quando a senadora oposicionista Silvina García Larraburu anunciou ter mudado de opinião para votar contra o projeto. Assim, se não houver mais mudanças de última hora entre os que já definiram posição, a proposta caminha para ser rejeitada, uma vez que restavam ontem apenas dois peronistas indecisos: José Alperovich e Omar Perotti. O prognóstico, apesar das incertezas, parece confirmar o perfil conservador do Senado argentino.

Em caso de rejeição, o projeto não poderá voltar a ser examinado pelo Congresso na atual legislatura — só a partir de 2020, com uma nova composição parlamentar. Por outro lado, se a matéria for aprovada no Senado com emendas, terá de retornar à Câmara dos Deputados para ratificação. No caso de aprovação sem alterações, o projeto será encaminhado para a sanção do presidente Mauricio Macri, que já tinha antecipado a decisão de não vetar a lei, embora seja pessoalmente contrário ao texto.

Os debates sobre o tema opõem dois antecessores de Macri no comando do Executivo argentino que hoje cumprem mandatos no Senado. De um lado, o antiaborto Carlos Menen; de outro, Cristina Kirchner, cuja bancada fechou questão a favor de legalizar a interrupção voluntária da gravidez.

Emendas

Na reta final das negociações, alguns senadores pró-aborto propõem a introdução de mudanças no projeto, para atrair apoios no campo oposto. Entre as ideias contempladas estariam a de incluir o direito dos médicos a exercer objeção de consciência e recusar o procedimento e a de reduzir de 14 para 12 semanas de gestação o prazo para a autorização do aborto. Enquanto se costuram alianças de última hora no Senado, os dois lados também lutam pelo apoio da população, dividida entre os “verdes” (favoráveis ao projeto), e os “celestes”, que o rejeitam.

Em junho, durante a votação na Câmara, os “celestes” eram muito menos numerosos nas ruas do que os “verdes”. Nesse novo embate, os opositores do projeto intensificam os chamados à mobilização, para que a desvantagem não se repita. Mais uma vez, espera-se uma longa e movimentada vigília em frente ao Congresso no dia da votação. Assim como ocorreu com os deputados, a previsão é de que a sessão de quarta-feira se estenda até o fim da noite ou avance pela madrugada de quinta-feira.

Dentro do governo, o ministro da Saúde, Adolfo Rubinstein, tornou-se um dos grandes alvos das críticas dos grupos antiaborto, por sua defesa do projeto. Os “celestes” tentaram, sem sucesso, impugnar sua apresentação no Senado, onde mostrou estatísticas que indicavam uma redução do número de abortos nos países que legalizaram o procedimento.

Rubinstein também frisou que na Argentina, anualmente, são realizados cerca de 450 mil abortos clandestinos, que levam à morte de 50 mulheres e à internação de 50 mil outras, devido a complicações derivadas de procedimentos inseguros. Segundo o ministro, a legalização representaria uma economia importante para os cofres públicos e traria mais segurança para a saúde das mulheres.

Proteção

“É uma certeza que o aborto ilegal é realizado em lugares marginais e com práticas médicas muito arriscadas. A Lei da Descriminalização e, portanto, a obrigação do Estado de fornecer essa prática em hospitais públicos, geraria claramente maior proteção para a saúde da mulher”, concordou Diego Raus, professor de Ciências Sociais da Universidade Nacional de Lanús e da Universidade de Buenos Aires.

A legalização do aborto é uma antiga causa na Argentina, mas ganhou forte impulso neste ano, com a mobilização de uma nova geração de feministas, em grande parte estudantes, que passaram a organizar protestos por meio das redes sociais e a chamar a atenção da população com o recurso a apresentações artísticas. Na América Latina, apenas Uruguai e Cuba adotam o aborto legal em todo o seu território.

Frase

“A imposição de um único conjunto de razões por meio de pressões ou lobbies leva ao fracasso do diálogo"

María Cecilia Corda, professora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso)

129

Total de deputados que votaram pelo aborto legal, em junho. O projeto teve 124 votos contrários e um parlamentar se absteve

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Escândalo ofusca debate

07/08/2018

 

 

A reta final para a votação do projeto de legalização do aborto no Senado coincide com o forte abalo sofrido pela Argentina com o escândalo dos “cadernos de suborno”. Desde a semana passada, 16 ex-funcionários dos governos da ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015) e do falecido marido, Néstor Kirchner (2003-2007), além de grandes empresários, foram presos por envolvimento em um esquema de propinas que movimentou mais de US$ 160 milhões, pagos em troca de obras públicas. Ontem, vários começaram a colaborar com o juiz Claudio Bonadio, na condição de “arrependidos”.

Bonadio, que já formulou 20 acusações por delitos conexos ao caso, convocou Cristina, atualmente senadora, a depor no próximo dia 13. Ela será inquirida sobre o conteúdo das anotações encontradas nos cadernos entregues à Justiça por Oscar Centeno, que foi motorista do ex-ministro do Planejamento Julio de Vido — um dos acusados pelas propinas, ele já estava detido por outras investigações sobre irregularidades nos governos dos Kirchner. Hoje, o Senado deve votar um pedido do magistrado para que sejam autorizadas operações de busca na casa da ex-presidente.

O empresário Ángelo Calcaterra, primo do presidente Mauricio Macri, adversário político do casal Kirchner, apresentou-se à Justiça e admitiu ter ordenado o pagamento de propinas quando era dono da construtura Iecsa. A empresa foi fundada por Fraco Macri, pai do atual mandatário, e cresceu impulsionada por contratos milionários com o Estado argentino.

Diferentemente de junho, quando a legalização do aborto foi aprovada na Câmara, as páginas principais de jornais como Clarín e La Nación foram dominadas pelo escândalo.

A questão do aborto voltou às ruas no fim de semana, com mobilizações a favor e contra o projeto. A  Conferência Episcopal Argentina convocou para amanhã uma “missa pela vida” na Catedral de Buenos Aires, na Praça de Mayo — que abriga a Casa Rosada (sede do governo). Os defensores do aborto legal farão vigília em frente ao Congresso.