Correio braziliense, n. 20167, 08/08/2018. Mundo, p. 12

 

Mais perto de Cristina

08/08/2018

 

 

ARGENTINA » Juízes anticorrupção mandam de volta para a prisão Amado Boudou, vice no segundo mandato da ex-presidente peronista. Condenado por aceitar suborno, ele reforça as suspeitas em torno da antiga chefe, alvo de vários processos

O cerco armado pela Justiça da Argentina em torno da ex-presidente peronista Cristina Kirchner fechou-se ontem sobre o vice-presidente no segundo mandato (2011-2015). Amado Boudou, voltou para a prisão, depois de ser condenado a cinco anos e 10 meses de prisão por aceitar suborno e conduzir “negociações incompatíveis com a função pública” — ambas as acusações se referem à venda da companhia Ciccone Calcográfica. Os juízes ordenaram o envio imediato de Boudou para cumprir pena no presídio de Ezeiza. A sentença inclui também multa de 90 mil pesos argentinos (US$ 3.200) e a definitiva inabilitação do ex-vice-presidente para o exercício de cargos públicos.

A condenação foi proferida no contexto de mais uma investigação sobre suspeitas de irregularidades que teriam ocorrido durante a administração de Cristina, ela própria objeto de vários processos. Em outro caso, ainda mais explosivo, foram presos, desde a semana passada, 16 empresários e ex-funcionários dos governos da ex-presidente e do falecido marido, Néstor Kirchner, acusados de envolvimento em um esquema de pagamento de mais de US$ 160 milhões em propinas, em troca de obras públicas. A ex-presidente foi convocada a depor sobre o caso na próxima segunda-feira.

Durante a audiência de ontem, Boudou ainda pôde ouvir a sentença contra o amigo José María Núñez Carmona, condenado a cinco anos e seis meses de prisão. Ambos retornarão à prisão de Ezeiza, sete meses após terem sido postos em liberdade por decisão da Câmara Federal (de Justiça) de Buenos Aires. Eles haviam passado 70 dias detidos nessa mesma unidade prisional.

Outro réu no processo, Nicolás Ciccone, ex-dono da Ciccone Calcográfica, foi condenado a quatro anos e meio, por corrupção ativa. Ele vai cumprir a pena em regime domiciliar, decidiram os magistrados.

Negócios duvidosos

Segundo as conclusões da investigação, Boudou e Carmona adquiriram a Ciccone Calcográfica, que estava falida, com a intenção de obter contratos públicos para a impressão de cédulas de dinheiro e  documentos oficiais. Na época, Boudou era ministro da Economia no primeiro governo da ex-presidente — cargo que ele exerceu entre 2009 e 2011.

A compra da empresa, segundo os autos do processo, foi concluída por meio da sociedade The Old Fund, de Alejandro Vandenbroele, apontado como testa de ferro de Boudou. Vandenbroele foi condenado ontem a dois anos de prisão e a prestação de trabalhos comunitários não remunerados. No entanto, foi dispensado do cumprimento da primeira pena.

O tribunal também determinou três anos de prisão para Rafael Resnick Brenner, que na época da compra da empresa era chefe da equipe de assessores da Receita Federal argentina. Por sua vez, Guido Forcieri, então chefe de gabinete de assessores no Ministério da Economia, recebeu uma pena de dois anos e meio de prisão.

As últimas palavras de Boudou antes da sentença foram proferidas pela manhã. “Eu nunca negociei para mim ou por terceiros os 70% do pacote (acionário) da Ciccone”, disse o ex-vice de Cristina. “Vandenbroele explicou que a companhia pertencia a empresários e que ele supostamente ouvira dizer que eu tinha um acordo com esses empresários, que ele não dizia o que era ou como sabia (disso), mas o próprio Vandenbroele disse que o suborno não existia, que não houve transferência ou negociação entre o senhor Nicolás Ciccone e eu, nem por mim nem por terceiros”, acrescentou Boudou.

“Há uma questão de revanche de classe e há também uma questão de ensinar: que ninguém se atreva a tentar mudar as coisas”, disparou o dirigente kirchnerista. “Os políticos que caminham na pista determinada pelos poderosos, esses caminham sem problemas. Os que decidem transformar a realidade são perseguidos. Inicialmente, de forma midiática. Depois, pelo sistema de administração das leis.”

Frases

“Há uma questão de revanche de classe e há também uma questão de ensinar: que ninguém se atreva a tentar mudar as coisas”

“Os que decidem transformar a realidade são perseguidos. Inicialmente, de forma midiática. Depois, pelo sistema de administração das leis”

Amado Boudou, ex-vice-presidente da Argentina

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Aborto vai ao Senado

08/08/2018

 

 

Com as atenções da opinião pública voltadas em boa parte para os desdobramentos dos escândalos de corrupção envolvendo o governo da ex-presidente Cristina Kirchner, o Senado da Argentina tem marcada para hoje a sessão histórica que decidirá o destino do projeto de lei que legaliza a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados, em junho, por 129 votos contra 124 — resultado que surpreendeu os analistas ao final de uma votação que se estendeu pela madrugada.

Considerada bem mais conservadora, a Câmara Alta do Congresso apresentava até ontem uma tendência a rejeitar a proposta. As últimas projeções da imprensa apontavam 36 votos contrários e 31 favoráveis, entre os 72 senadores, com  expectativa de uma abstenção e uma ausência — restavam dois indecisos.

A despeito da atenção dedicada pela mídia ao cerco da Justiça contra a ex-presidente (que hoje é senadora), o último fim de semana foi marcado por uma grande manifestação antiaborto, convocada pela Igreja Católica, que exerce forte influência na sociedade. Desde segunda-feira, militantes de ambos os lados mantêm presença diária diante da sede do Legislativo.

Uma multidão deve se formar hoje em frente ao Congresso. De um lado, os “verdes”, favoráveis ao projeto. Do outro, os “celestes”, que se apresentam como “defensores da vida”. A campanha pela legalização do aborto tem como carro-chefe o movimento feminista e os estudantes. Do outro lado, a Igreja, reforçada pela liderança do papa Francisco, um argentino.

Os “verdes” receberam ontem um apoio de peso. A edição internacional do jornal americano The New York Times, que chega a 134 países, estampou em toda a contracapa um anúncio da Anistia Internacional, uma das principais organizações de direitos humanos do mundo. “Complicações de abortos inseguros são a principal causa de morte materna na Argentina”, começa o texto. “Em 8 de agosto, os senadores na Argentina podem mudar isso, se votarem a favor de uma lei que descriminalize o aborto.”

Outra manifestação importante veio da atriz americana Susan Sarandon, conhecida defensora de causas feministas. “A criminalização do aborto não impede que as mulheres o reali-zem. Apenas as empurra para recorrer a lugares inseguros e clandestinos. Senadores argentinos: o mundo os está assistindo: deem às mulheres o direito de decidir!”, escreveu Sarandon em sua conta no Twitter.

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Debate em andamento

08/08/2018

 

 

Como na maior parte da América Latina, o aborto só é autorizado, na Argentina, quando a gravidez é resultado de estupro ou representa risco para a saúde da gestante. Com diferenças na definição das condições específicas em que é permitida a interrupção voluntária da gestação, normas semelhantes regem o tema em países como Guatemala, Paraguai e Venezuela. No Brasil, onde a prática atualmente é legal nessas condições, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu debate sobre uma revisão das legislação.

Cuba e Uruguai são os dois únicos países da região onde o aborto é totalmente descriminalizado. A norma vale também  na capital federal mexicana, a Cidade do México. O Chile promoveu em 2017 uma liberalização das normas, e agora permite a interrupção da gravidez em casos de estupro, risco para a mãe e inviabilidade do feto.

A prática é absolutamente proibida em países de tradição católica e cristã mais arraigada, como Nicarágua, Honduras, Suriname, Haiti e República Dominicana e El Salvador.

As tentativas de mudar a legislação sobre o aborto na América Latina acompanham a tendência mais liberal enraizada na Europa e na América do Norte. Em maio passado, a Irlanda, país de forte influência católica, aprovou em referendo à legalização, mas a prática segue estritamente proibida na Irlanda do Norte, sob domínio britânico — embora seja autorizada no restante do Reino Unido.

Nos Estados Unidos, onde o aborto foi legalizado em 1973, grupos conservadores estudam a possibilidade de recorrer à Corte Suprema, apostando na recomposição do plenário com a indicação de um juiz proibicionista pelo presidente Donald Trump.